O pior câncer do cérebro vive da sua própria
gordura
Descoberta vem com
novas possibilidades de tratamento
Estamos fadados a ter os mesmos neurônios pela vida
toda, porque uma vez tornada neurônio, a célula nunca mais se divide: ela está
agora "terminalmente diferenciada".
O lado ruim de não ter neurônios
velhos substituídos por neurônios novos ao longo da vida é que, ao que indica a
minha pesquisa, a gente só dura enquanto ainda tem neurônios saudáveis o
suficiente para manter corpo e cérebro funcionando como um todo integrado.
O lado bom é que nós somos seres com continuidade,
cujos circuitos cerebrais mantêm a mesma identidade, fazendo com que a gente
apenas se torne mais acirradamente a gente mesmo com o passar do tempo.
Sem
falar da parte onde, como neurônios não mais se dividem, não existe qualquer
possibilidade de um câncer no cérebro ser causado por
neurônios se dividindo fora de controle.
Alguns raros tumores no cérebro são
aglomerados de neurônios anormais, mas nenhum câncer do cérebro é um câncer
neuronal.
(Parênteses para explicar a diferença entre um
tumor e um câncer: um tumor é um aglomerado de células onde normalmente não há
nenhum, mas essas células permanecem juntas, formando uma massaroca autocontida
e às vezes até encapsulada.
Um tumor, enquanto permanece tumor, não se espalha
–mas, assim que se espalha, já não é mais tumor, e sim câncer, e o problema do
câncer é que ele rouba recursos das partes normais do corpo, quando não as
estrangula, atrapalha ou sumariamente destrói.)
Os diversos cânceres do cérebro são oriundos das
"outras" células: a glia, nome que vem do grego para
"cola", que foi a primeira função aventada para essas células que
formam uma rede densa ao redor dos neurônios.
O mais invasivo, e por isso
maligno, desses cânceres do cérebro é o glioblastoma, que pode ser formado
diretamente a partir de células progenitoras que persistem no cérebro e que
normalmente repõem tanto astrócitos quanto oligodendrócitos, os dois tipos de
células gliais.
Glioblastomas crescem rapidamente, evadem o próprio sistema
imunitário e resistem a tratamento.
Um grupo de pesquisadores na Holanda
mostrou recentemente, em estudo publicado na revista Cell, o porquê:
glioblastomas fazem as células do sistema imunitário do cérebro comerem a
gordura da bainha de mielina que encapa os neurônios e regurgitar a gordura
mastigada para as células cancerosas.
A mielina é uma capa de proteína e gordura feita
por braços de oligodendrócitos que se enrolam ao redor das longas fibras dos
neurônios que formam os circuitos do cérebro. Encapados, neurônios transmitem
sinais rapidamente entre si.
O novo estudo mostra que as células cancerosas do
glioblastoma transformam os macrófagos que invadem o câncer, vindos do sangue,
em vampiros sedentos por mielina (e que, de quebra, "esquecem" de
atacar o câncer).
Esses macrófagos anormais não destroem a mielina,
mas a comem, digerem e regurgitam, como mamães-pássaro, para as células do
glioblastoma.
Com uma dieta rica assim em calorias, o câncer cresce
rapidamente.
Agora, a boa notícia: os pesquisadores já
localizaram ao menos duas drogas que bloqueiam a destruição da mielina pelos
macrófagos para alimentar o glioblastoma, e elas funcionam lindamente em
camundongos com esse tipo de câncer.
Ainda há muito a pesquisar até que vire tratamento
para humanos, mas os holandeses felizmente têm dinheiro para isso.
SUZANA
HERCULANO - HOUZEL - bióloga e neurocientista da
Universidade Vanderbilt (EUA)