Inteligência artificial é a mais nova aliada da
astronomia
A ciência de dados
e o papel da ciência básica no progresso
Vinte petabytes. Será esse o tamanho do catálogo
final a ser produzido pelo Observatório Rubin, no decurso de dez anos de
observações do céu. São 20 milhões de gigabytes, ou o equivalente à memória
conjunta de 100 mil celulares.
Não é para menos. Durante esse período, o
telescópio vai varrer o céu em busca de eventos transientes, ou seja, objetos
astronômicos com brilho variável ou que podem desparecer rapidamente, como
supernovas.
A cada três noites o céu completo será registrado, e ao longo do
tempo teremos um filme detalhado da evolução do universo após vários anos.
Serão 15 terabytes por noite, para um catálogo final de 10 milhões de
supernovas descobertas, além de 17 bilhões de estrelas e 20 bilhões de
galáxias.
Com esses números astronômicos —desculpem o
trocadilho— há de se imaginar como conseguiremos processar tantos dados.
Afinal, com 1 milhão de supernovas por ano, não podemos esperar que astrônomos
examinem visualmente cada imagem produzida: tal perquirição exigirá o uso de
algoritmos de busca rápidos e uma ciência de dados de ponta.
Assim, para esse e outros projetos na pesquisa
astrofísica, a utilização de técnicas computacionais é cada vez mais
fundamental. Precisamos automatizar nossos computadores para que realizem as
tarefas de maneira eficiente, e a uma velocidade muito mais célere que a de um
ser humano.
Voltando ao exemplo das supernovas, é crucial que
as descobertas sejam feitas e anunciadas quase instantaneamente.
Um computador
pode, em questão de minutos, vasculhar as observações buscando uma estrela que
não estava lá antes, comparando as imagens com observações prévias, e
calculando a probabilidade de que aquele ponto brilhante seja uma supernova,
além de anunciar a descoberta a cientistas do mundo todo, para que possam
apontar outros telescópios na mesma direção a fim de investigar melhor o fenômeno.
Tudo isso antes que a supernova perca seu brilho, inviabilizando a pesquisa.
Outro exemplo importante é a análise de formas de
galáxias, um aspecto muito significativo de seu estágio evolutivo.
Costumávamos
fazer a classificação visualmente, mas isso é impossível quando estamos falando
de dezenas de bilhões de objetos.
Nesses casos, a inteligência artificial é uma
aliada de peso. Não estamos falando de computadores que vão se rebelar contra
seus donos e dominar o mundo como nos filmes de Hollywood, mas sim de programas
capazes de identificar as características principais de um astro pelas imagens,
repetindo o processo de classificação de forma eficiente para bilhões de
galáxias.
Já participei de alguns trabalhos que faziam isso,
produzindo catálogos de galáxias muito mais vastos e eficientes do que
poderíamos fazer se nos restringíssemos à capacidade humana.
O interessante é perceber como nosso trabalho
começa a se assemelhar, mais e mais, ao trabalho de ciência de dados em
empresas.
O objetivo é diferente, claro, mas a metodologia é semelhante,
vasculhando bancos de dados para classificar os resultados, aproveitando as
melhores combinações de propriedades.
É o mesmo na prospecção de ações no
mercado financeiro ou em companhias de redes sociais que estão planejando os
melhores anúncios para cada usuário.
Não à toa um dos principais destinos dos estudantes
de astronomia para além do meio acadêmico é a posição de cientista de dados em
empresas privadas. Vários astrônomos —às vezes até mesmo após a conclusão dos
cursos de mestrado ou doutorado— acabam encontrando colocações bem remuneradas
sob tais condições.
Acredito que é importante aproveitar essas
oportunidades. Primeiro, pela possiblidade de atração de investimentos por meio
de parcerias com empresas.
Já há grupos de pesquisa no país que conseguem
montar equipes e construir supercomputadores com essa experiência: ao mesmo
tempo que essa infraestrutura ajuda na prospecção de petróleo, também serve
para a análise de imagens astronômicas.
Além do mais, entendo que isso pode ajudar a
entender como o conhecimento se constrói nas universidades e institutos de
pesquisa.
Muitas vezes me perguntam para que serve meu trabalho, como se o
entendimento do universo não fosse objetivo suficiente.
Mas não é só isso: eu trabalho em uma instituição
que valoriza o conhecimento e a descoberta. Sem o estímulo ao pensamento livre,
a visão utilitarista de pesquisa com vistas ao produto impede a livre
circulação de ideias que realmente nos permite avançar.
Sem essa liberdade, não
teríamos, por exemplo, a internet, inventada para permitir a comunicação
eficiente de pesquisadores.
Não importa se meu objetivo é entender a formação
de galáxias no começo do universo ou prever o comportamento da bolsa de ações
nos próximos dias; o fundamental é reconhecer o papel da criatividade e
liberdade de ideias das instituições científicas no avanço do conhecimento, e
seu potencial multiplicador por meio de parcerias com agências governamentais e
empresas privadas.
THIAGO S. GONÇALVES - astrônomo, diretor do Observatório do Valongo da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e divulgador de ciência.