O anúncio no jornal "O Globo" do dia 28 de outubro
|
Muitos acharão mórbido, mas conheço pessoas que começam sua
leitura do jornal pelos anúncios funerários. Não por acaso, sou uma delas.
Talvez seja uma maneira de me certificar de que, como meu nome não está num
daqueles quadradinhos cercados por um grosso fio preto, posso mergulhar sem
susto no resto do jornal. Isso não altera a sensação de que o mundo parece
estar diminuindo –pela quantidade de nomes de amigos, conhecidos e até
ex-namoradas que, a partir de certa época, passamos a encontrar nos
quadradinhos.
O que, às vezes, pode nos levar também a equívocos. Há algumas
semanas, caiu-me aos olhos, nos anúncios funerários do "Globo", o
nome de Adquira Carneiro Perpétuo. Como já tive amigos com esses sobrenomes,
imaginei que talvez pudesse ter conhecido dona Adquira. Mas um rápido exercício
de memória não me disse nada. Logo o olho transferiu-se para outros
quadradinhos e, com isso, esqueci o assunto.
Uma semana depois, reencontrei o nome de dona Adquira na página
dos funerários. Com certeza, seus parentes estariam convidando para uma missa
de sétimo dia. Não me detive no anúncio porque as missas são muitas e só me
interesso pelas dos mais chegados.
Passou-se outra semana e lá estava, de novo, dona Adquira na
página. Isso me intrigou. O que seria agora? Convite para a missa de 30º dia?
Ou a gratidão de seus filhos e netos pelos exemplos que a pranteada senhora
lhes dera em vida? Achei bonito –talvez eu próprio gostasse de ter conhecido
dona Adquira.
E só então me dei conta. Não havia uma dona Adquira. O anúncio
apenas convidava o leitor a adquirir um carneiro perpétuo no cemitério São João
Batista. Seguiam-se telefone de contato e preço, e como não vi isso antes?
Preciso ler esses anúncios com mais atenção –de repente, posso entrar num deles
sem perceber.
Ruy Castro - escritor e jornalista. Considerado um
dos maiores biógrafos brasileiros, escreveu sobre Nelson Rodrigues, Garrincha e
Carmen Miranda.
Fonte: jornal FSP