A ciência brasileira, quem diria, tem uma vantagem


A ciência brasileira, quem diria, tem uma vantagem

Só falta ter dinheiro.

Eu tive uma revelação recentemente. Não, o sistema de financiamento da pesquisa científica no Brasil não se tornou subitamente maravilhoso aos meus olhos. 

Não pode ser, pois não tem fundos suficientes para financiar nada direito, então o resultado continua sendo pulverização de migalhas minguadas, financiamento pró-forma que mal dá para inglês ver.

Mas, se tivesse fundos, o sistema brasileiro seria exemplo para o resto do planeta, por uma razão simples, banal, e tão, tão linda —razão esta representada pelo nome do programa mais importante de financiamento do CNPq, o órgão do governo brasileiro responsável por bancar sua ciência: a Chamada Universal.

(Parênteses para explicar a importância do CNPq para a ciência no país. A pesquisa é feita por pesquisadores, e ambas as partes custam dinheiro. 

Os pesquisadores ou são professores concursados, e portanto empregados de algum governo e pagos por ele [ou uma rara universidade privada, como a PUC], ou são "estudantes" ou "pós-doutores" custeados por "bolsas" de uma Fundação de Amparo à Pesquisa estadual —as FAPs— ou de uma agência federal como o CNPq. 

A pesquisa, fora de eventuais indústrias, costumava ser inteiramente bancada pelas FAPs e CNPq; a alternativa, que é financiamento privado, só passou a existir a sério no Brasil com a criação do Instituto Serrapilheira, em 2017.

Portanto, a ciência brasileira tem essencialmente o tamanho do investimento que o governo faz nela. Fecha parênteses.)

Quando eu virei pesquisadora pela UFRJ, o nome era Edital Universal, e a concorrência desleal era um problema enorme: só ganhava financiamento pesquisador que já estivesse no sistema, ganhando financiamento. 

Agora existe uma faixa de entrada, tipo a piscininha pras crianças brincarem e quem sabe serem promovidas para a piscina dos adultos.

Para quem acha que estou de deboche, reitero que a piscininha é fundamental, porque na piscina dos adultos, não basta flutuar: é preciso chegar bem colocado para conquistar apoio financeiro. Cruel, mas vá lá. 

Competição é necessária quando não há fundos para todos, e a "solução" de dar migalha para todos não tira ninguém do lugar.

Enfim, a parte importante continua: a Chamada por pedidos de apoio é Universal. Universal quer dizer que não importa, em princípio, se o tema da proposta de pesquisa é câncer, neurociência, engenharia aeroespacial ou nutrição. 

Não importa se é pesquisa básica ou aplicada. Todos os projetos são avaliados, cada um por seu comitê específico, mas o objetivo é um só: contribuir para "o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação do País, em qualquer área do conhecimento".

E isso é lindo porque ninguém precisa fantasiar sua ciência. No Brasil, nunca precisei apelar para aplicações remotas da minha pesquisa sobre o básico do básico da neurociência.

Nos EUA, o equivalente mais próximo da universalidade do CNPq é a National Science Foundation (NSF), que também tem seus problemas, a começar por verba mirrada. 

O primo rico é o National Institutes of Health (NIH), cujo financiamento é disputado a tapa como a coroação do Pesquisador Independente.

A verdade, no entanto, é que o NIH tem agenda própria. Os diretores dos vários programas definem o tipo de ciência que querem —e os pesquisadores, "terceirizados" em universidades, que se virem para se adequar. 

A "liberdade acadêmica" fica por conta da rebeldia e criatividade dos pesquisadores para se virar com o que (não) têm. Hmm. Onde foi que eu já vi isso?

SUZANA HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

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