A
greve dos garis do Rio de Janeiro, realizada durante o carnaval, terminou com
uma retumbante vitória dos trabalhadores. Tão retumbante que deveria ter
causado surpresa, por qualquer que fosse o ângulo de análise: pela imagem
daquela massa de gente pobre, majoritariamente negra, em seus uniformes
laranja, rebelada contra seu sindicato, a reivindicar seus direitos; pela
interrupção de um serviço essencial, sem aviso prévio, num período em que
multidões vão às ruas e o volume de lixo se multiplica; mas, talvez mais ainda,
pelo tamanho do reajuste obtido ao fim de uma semana de paralisação.
Durante
todo o tempo, o prefeito acenava com um aumento de 9% e dizia que este era o
seu limite, não havia como pagar mais. Ainda na manhã de sábado (8/3), em
sucessivas entrevistas na TV, Eduardo Paes reiterou essas afirmações e
desqualificou o movimento, que chamou de “motim”. No entanto, no fim da tarde,
acabou atendendo quase integralmente à demanda dos grevistas e fechou um acordo
de reajuste de 37%, fora outros benefícios.
O que
terá ocorrido entre a manhã e a tarde daquele sábado para tamanha reviravolta?
Será que foi apenas a chuva, capaz de transformar o Rio num pântano deletério,
o que apressou o desenlace?
Sem
resposta
Os
jornais não informaram. Trataram descritivamente do resultado das negociações,
como se a aceitação de um índice de reajuste de 28 pontos percentuais maior do
que o proposto originalmente pelo empregador fosse a coisa mais banal do mundo.
O Jornal Nacional deu uma nota seca, lacônica, contraditória ao espaço
que vinha destinando ao tema. O Globo, que também vinha noticiando em
manchete os prejuízos provocados pela greve, preferiu registrar o desfecho numa
chamadinha de capa. O Extra, igualmente, anotou o fim da greve em uma
linha na capa. O Dia deu manchete destacando o aumento, a GloboNews
cobriu a negociação e fez entrevistas, mas ninguém indagou como foi possível
aquele acordo.
Ora,
não há exemplo recente ou remoto de situação parecida, ainda que se considere
que a remuneração dos garis continue muito baixa, dada a relevância do serviço
prestado: o piso salarial sai de pouco mais de R$ 800 para R$ 1.100, mais 40%
de insalubridade, além do significativo reajuste no vale-alimentação, que passa
de R$ 12 para R$ 20.
Mas
um percentual de aumento desse tamanho, ainda mais nas circunstâncias em que
foi obtido, não deveria ser objeto de análise?
Sem
sair da rotina
A
greve dos garis, deflagrada à margem do sindicato da categoria, pegou todo
mundo de surpresa. A imprensa reiteradamente indagou do prefeito e do
presidente da Comlurb sobre um “plano de contingência”, que de fato não havia.
Porém a própria imprensa não foi capaz de fugir à rotina, programada para a
previsível cobertura do carnaval. Só três dias depois do início da paralisação,
quando era impossível ignorar os montes de lixo espalhados pelas ruas e
calçadas, passou a noticiar a greve. Fugiu pouco às fontes oficiais: acolheu a
versão de que se tratava de um movimento minoritário, sem considerar que, se
assim fosse, as consequências para a cidade não seriam tão danosas. Buscou
apurar ligações políticas dos líderes grevistas: O Globo apurou que dois
deles haviam sido candidatos a vereador pelo PR do ex-governador Anthony
Garotinho em 2012. Em contrapartida, O Dia mostrou que um dos diretores
do sindicato havia se candidatado nas duas últimas eleições por partidos
coligados ao do prefeito Eduardo Paes.
Em
princípio, a militância partidária em movimentos sociais e de trabalhadores não
deveria causar estranheza, mas a insistência na negação desses vínculos – “não
tem partido envolvido nisso”, disse um dos líderes, justamente um dos
ex-candidatos pelo PR – acaba favorecendo as suspeitas quanto aos interesses
envolvidos na deflagração de uma greve desse tipo em pleno carnaval, num ano de
eleição. Partidos de esquerda também apoiaram o movimento, sem entretanto
assumirem qualquer influência sobre ele. É costumeira a articulação de legendas
ideologicamente distintas, e até opostas, contra um inimigo comum, na
expectativa tantas vezes ilusória de que a almejada vitória eleitoral lhes
permitirá, uma vez no poder, descartar os antigos aliados de ocasião.
Privatização
à vista?
Informar
com precisão quem organiza movimentos como esse, e com que objetivos, deveria
ser uma das tarefas do jornalismo, mas a adesão de certa imprensa – no caso,
especificamente, as Organizações Globo – aos programas dos governos estadual e
municipal do Rio lhe retira, ou pelo menos reduz, a credibilidade quanto às
denúncias de manipulação política em situações assim.
Porém,
não foi apenas no campo político-partidário que surgiram suspeitas: já na
quinta-feira (6/3) O Globo publicava matéria com críticas à permanência
da coleta de lixo nas mãos de servidores públicos. Dois dias depois, o jornal
voltava ao tema: “Greve suscita debate sobre terceirização”. Na mesma edição, o
prefeito acusava a pressão de empresários interessados em transformar a coleta
numa concessão para explorarem privadamente esse serviço e prometia que, enquanto
estivesse no cargo, a Comlurb permaneceria uma empresa pública.
Repetiu
essa promessa em entrevistas na TV, nas quais reiterava as críticas à
representatividade do movimento grevista e insistia na impossibilidade de
conceder aumento além dos 9%. Horas depois, aceitaria o acordo dos 37%. O chefe
da Casa Civil apareceria sorridente elogiando os garis e dizendo que, apesar do
impacto de R$ 400 milhões no orçamento da companhia, seria possível pagar os
novos salários, “apertando daqui, cortando dali”.
E pronto,
é o que basta: ouvimos as fontes e damo-nos por satisfeitos.
Se é
possível haver apertos e cortes, aqui e ali, será que é porque existe excesso
de cargos administrativos? Se os apertos e cortes não forem suficientes para
honrar os compromissos, abre-se o caminho para o aumento de impostos ou para a
privatização da empresa?
Essas
questões, tão óbvias, não mereceram a atenção dos jornais.
A
“cesta” do prefeito
Pelo
contrário, o episódio em que o prefeito foi flagrado arremessando um resto de
fruta durante um pequeno ato político na Zona Oeste do Rio ganhou
desproporcional visibilidade para o tamanho do deslize, especialmente diante
dos impasses no contexto da greve. Mas foi um episódio simbólico, ainda mais
que a prefeitura instituiu, não faz muito tempo, a campanha Lixo Zero, com
pesadas multas para quem jogar lixo no chão.
Foram
inúmeras as gozações nas redes sociais. A tentativa de explicação da assessoria
do prefeito, aliás, é dessas peças que entram para o anedotário jornalístico:
ele não teria jogado o resto de fruta no chão, mas “na direção de uma lixeira
mais afastada, ou para que um de seus assessores fizesse o descarte em local
adequado”. “Fica criada assim a categoria de assessor de descarte, ou gari de
prefeito”, ironizou Elio Gaspari, em sua coluna de domingo (9/3).
Efeito
multiplicador
Gaspari,
aliás, abre sua coluna deplorando a falta de sensibilidade no trato com os
grevistas: “As cidades têm alma, e o prefeito Eduardo Paes parece não entender
a da sua. O Rio tem a capacidade de se encantar com personagens do andar de
baixo”.
Foi
um pouco esse encantamento que levou a tantas manifestações comovidas de apoio
à greve nas redes sociais, que relevavam o dano à circulação e a possibilidade
de dano à saúde pública, resultante das montanhas de lixo espalhadas por
calçadas e ruas: houve mesmo quem se regozijasse com a situação, no velho
estilo “quanto pior, melhor”, como se o prejuízo fosse apenas do prefeito, e
não de toda a cidade.
Greves
são um direito, mas greves no serviço público têm uma particularidade que não
pode ser ignorada. Nas redes sociais, onde, como se sabe, raramente há debate,
as críticas à deflagração do movimento durante o carnaval, a referência aos
danos que poderiam ser causados aos moradores e as suspeitas de manipulação
político-partidária foram sistematicamente desqualificadas como atitudes
autoritárias, conservadoras, “de direita”. Não importam os exemplos que a
História fornece.
O
movimento dos garis, ainda mais por sua retumbante vitória, tende a produzir um
efeito multiplicador, particularmente importante neste ano de eleições. Ao
mesmo tempo, a ausência de grupos de mascarados que vinham promovendo
espetáculos pirotécnicos destrutivos na onda de protestos “contra tudo” foi
significativa e pode assinalar a retomada de manifestações maciças que envolvam
tanto as reivindicações de cunho sindical como as demandas por mais democracia.
Jornais
podem ter seus compromissos político-ideológicos, mas não podem, até por uma
questão de sobrevivência, ficar alheios a essas pautas.
Sylvia Debossan Moretzsohn - jornalista, professora
da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel
dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas,
2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao
senso crítico (Editora Revan, 2007)
Fonte: site observatório da Imprensa