Vênus dita estrela d’alva,
começa o dia, mas também designada como Vésper, é a que o encerra. O apelido de
“Vênus Platinada” designava o resplandecente prédio administrativo da TV Globo
na Rua Lopes Quintas, no Jardim Botânico (Rio), inaugurado em 1976, onze anos
depois da primeira emissão e, depois, estendido à emissora e à rede.
Como todas as alcunhas,
espontânea e sarcástica: Vênus é um equívoco – brilha forte, mas não é estrela,
é planeta. Não é feminina, mas masculino. A platina, metal mais raro e precioso
do que o ouro, gera o adjetivo platinado/platinada com idêntico sentido
pejorativo de dourado/dourada – falso, falseado.
O pedido de concessão feito
pelo jornalista Roberto Marinho para uma emissora de televisão foi aprovado em
1951, no fim do governo de Eurico Gaspar Dutra, mas revogado por Getúlio Vargas
pouco antes do seu suicídio. O que explica alguma coisa. Novo pedido foi
aprovado em 1957, com Juscelino Kubitscheck na presidência da República. O
lançamento da emissora, anos depois, foi algo tumultuado. Como seria o canal 4
do Rio de Janeiro, pretendia-se iniciar as transmissões no domingo, 4 de abril
(4/4). Problemas com os equipamentos de última geração só permitiram que o
lançamento ocorresse na manhã de uma cotidiana segunda-feira, 26 de abril de
1965, com a bênção do reacionaríssimo cardeal D. Jaime Câmara.
O que não impediu outras fatalidades imediatas: por exemplo, na
abertura do programa Show da Noite da sexta-feira, 13 de agosto,
apresentado pelo ator Gláucio Gil. Quando, diante das câmeras, o apresentador
dizia que até aquele momento o dia aziago não se confirmara, teve um enfarte
agudo e morreu.
A fama de pé-frio só desanuviou
na terrível enchente em janeiro de 1966, quando a TV Globo ficou 24 horas no ar
e levou as suas câmeras para a rua para ajudar os desabrigados e localizar as
vítimas da catástrofe.
Entrevista
dolorosa
Pouco antes do início das transmissões, este observador, então
editor-chefe do Jornal do Brasil,
enviou um longo memorando a todos os editores, subeditores e responsáveis pelos
serviços de apoio da Redação chamando a atenção para uma nova realidade: a
entrada da TV Globo no ar significava uma nova fase na cobertura jornalística.
Embora a TV brasileira tivesse começado em 1950, a Globo chegava alavancada
pelos vastos recursos do grupo americano Time-Life, mas também por uma
competência profissional que se irradiava por todos os escalões do jornal e da
rádio coirmãs.
A bagunça da TV Tupi e de suas
concorrentes jamais preocupou e a inteligência da TV Excelsior (do empresário
Wallace Simonsen) estava sufocada pelo cerco econômico imposto pelo governo
militar.
A partir daquele momento – dizia o memo,
cujo original infelizmente encontra-se perdido – o jornal do dia seguinte
deveria ser pensado em função do conteúdo do Tele Globo, o
noticiário da noite anterior (precursor do Jornal Nacional).
Os fatos noticiados pelo jornal deveriam chegar ao leitor renovados e
enriquecidos por análises e interpretações, porém sem o recurso de colunas
independentes (praga hoje responsável pela perda do viço e a linearidade da
matéria noticiosa).
O Departamento de Pesquisas do JB, criado meses
antes, deixaria de ser exclusivamente um serviço de apoio aos repórteres e redatores
passando a produzir suas próprias matérias, devidamente identificadas, para
fornecer ao noticiário os contextos e complementos que o telejornal da véspera
jamais ofereceria.
Outras providências foram implementadas, todas na direção do
aumento da densidade jornalística e facilidade de leitura que deixariam o Jornal
do Brasil invulnerável
às novas tecnologias. O jornal O Globo só adotou a nova postura anos mais
tarde, quando passou a ser comandado por Evandro Carlos de Andrade (ex-JB).
O derradeiro embate entre o Jornal do Brasil e o Globo, no início
dos anos 1970, deu-se quando o ex-vespertino O Globo resolveu assumir-se integralmente como
matutino e, contrariando tradição e protocolos corporativos, passou a circular
também aos domingos, o que levou o JB a invadir o território das
segundas-feiras até então reservado aos jornais da tarde.
Mesmo contando com a cobertura de uma rede de emissoras de TV já
consagrada, no curto prazo aquele confronto foi vencido pelo JB.
O jornalão poderia ter sobrevivido galhardamente ao atual oligopólio da Vênus
se mantivesse a aposta em qualidade iniciada nos anos 1950 e acrescida daquele
mínimo de compostura e decência que o negócio de jornalismo torna
imprescindível.
Há meio século, como agora, o
único “modelo de negócio” capaz de tornar-se invulnerável às novas tecnologias
e à inevitabilidade dos ciclos econômicos é a crença nos valores permanentes,
intrínsecos ao próprio negócio. A obsolescência torna-se inevitável, fatal,
quando a fé pública é flagrantemente violada por aqueles que deveriam
venerá-la.
A entrevista dos representantes da família Marinho ao jornal Valor
Econômico (de sua
propriedade; ver aqui) é dolorosa. Junto com o melancólico
quadro inserido no Jornal Nacional(durante
a semana de 20 a 25 de abril) revelam uma Vênus nem dourada nem platinada –fanée, desbotada,
descolorida.
O oba-oba em homenagem ao
venerando plim-plim tem algo de adeus. Uma lástima.
Alberto Dines – jornalista, escritor,
dirigiu e lançou diversas revistas e jornais no Brasil e em Portugal, foi
editor –chefe do Jornal do Brasil, criou o site Observatório da Imprensa, é
pesquisador sênior do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da
Unicamp.
Fonte: site Observatório da Imprensa