Trechos
de A desintegração dos jornais, de Leão Serva, 95 pp., Editora
Reflexão, São Paulo, 2015; livro voltado para alunos de graduação em Jornalismo
Há uma crise profunda no
jornalismo. Desde o final do século 20 as empresas de comunicação têm tentado
conter a queda de relevância e receitas apostando em duas soluções: cortes de
custos generalizados, principalmente com demissões de jornalistas, e integração
das equipes dos diferentes veículos e meios, digitais ou analógicos.
O que Leão Serva mostra,
neste compilado de artigos sobre a decadência do jornalismo tal como o conhecemos
nos últimos 200 anos, é que essas duas tentativas apresentadas como soluções
para os desafios dos novos tempos, não estancaram a sangria. Ao contrário,
condenam o paciente a um agravamento da doença.
Em sua argumentação,
Serva aponta que a sobrevivência dos jornais passa pelo caminho oposto: a
desintegração das redações e a dissolução da fórmula industrial – inclusive com
a redução da hierarquização dos seus produtores. “O jornal do futuro é o jornal
do passado”, diz.
Jornalista e
administrador experiente em mídia analógica e digital, Leão Serva faz neste
livro uma análise baseada em experiência pessoal e em estudos recentes,
“tropicalizando” a reflexão sobre a crise no jornalismo contemporâneo.
Seguindo
tendência internacional, talvez de forma mais radical do que em outras partes
do planeta, a imprensa brasileira tem investido esforços e recursos em uma
reestruturação de suas organizações internas que tem sido chamada, com grande
dose de euforia, de “integração das redações”. Os principais jornais do país,
que nos anos 1980-90 viveram anos de hiperconcorrência, mostram absoluta
sintonia ao falar sobre o futuro dos jornais. Folha, Globoe Estadão anunciam
já ter vencido em suas empresas o desafio evolutivo de juntar e “integrar” as
redações onlinee offline. Lamento desafinar o coral:
entendo que descrevem um erro histórico que ainda vai condenar as empresas, e
outras que adotaram as mesmas decisões, a muitos anos de consequências ruins,
possivelmente para suas edições impressas e, com certeza, para as áreas online.
Pessoalmente, por tudo que observo na história dos meios e na
evolução recente dos veículos impressos e baseados em meios eletrônicos, creio
que a solução para a evolução das duas espécies e a sobrevivência dos jornais
está exatamente no caminho oposto, na desintegração das redações, tanto no
sentido de separação das áreas produtoras de jornalismo para os diferentes
meios, mesmo dentro de uma mesma empresa, quanto também dissolução da fórmula
industrial que foi adotada para as redações, inclusive com a redução da
hierarquização dos seus produtores. A principal consequência dessa
desintegração será desfazer o secular processo de proletarização dos
jornalistas concentrados em uma fábrica e organizados como nas grandes linhas
de montagem, que reproduziram processo fabril ocorrido em quase todas as
indústrias a partir de meados do século 19.
A necessidade recente sentida pelas empresas jornalísticas
tradicionais de juntar as áreas online e impressa se deve a problemas
econômicos que vêm enfrentando pela redução de audiência e receitas na área
impressa, que até o momento é quem “paga suas contas”, ao mesmo tempo em que
crescem a audiência e os custos de suas áreas online, sem incremento suficiente
das receitas. Como não conseguem dinheiro bastante nas áreas online para
enfrentar seus custos crescentes, mas veem a audiência crescer também
vertiginosamente, garantindo uma “luz de público no fim do túnel”, as empresas
buscam atender a demanda de fundos para custear suas experiências nos meios
digitais, aglomerando seus funcionários em um único espaço produtor de conteúdo
com diversas saídas para diferentes meios. Os mesmos jornalistas (ou um pouco
menos, se puderem cortar custos) produzem mais informações e as disponibilizam
para todos os veículos da casa, convencionais ou eletrônicos. É uma forma de
aumentar a oferta de conteúdos para todos os meios sem aumentar a produtividade
individual. Cada jornalista produz mais ou menos o mesmo que antes, mas seus
textos são publicados em diferentes canais. A produção de cada trabalhador
jornalista se mantém semelhante mas o uso do que ele produz pela empresa se
intensifica pela veiculação em mais canais. Se antes havia o risco de um mesmo
fato ser coberto por dois diferentes jornalistas de uma mesma empresa, um para a
área impressa e outro para a área online, no novo momento um só repórter fará a
cobertura de um fato dado para diferentes meios noticiosos da mesma empresa.
Outros repórteres farão a cobertura de outras notícias e os diferentes meios
controlados pela mesma empresa receberão mais narrativas para publicar. Aumenta
o volume de notícias em cada veículo ou plataforma, aumenta a percepção de
produtividade individual, aumenta a produtividade da empresa em número de
notícias, aumenta a quantidade de informações veiculadas na soma dos veículos
da companhia.
Andar
com pernas próprias
Embora
essa solução tenha lógica inquestionável quando observada sob o ponto de vista
das finanças da empresa jornalística tradicional diante dos desafios de sua
área de internet, o mesmo não se conclui quando se parte duma análise
estratégica de longo prazo: grandes sites jornalísticos no mundo, tais como o
“Huffington Post”, são independentes de grandes conglomerados jornalísticos
tradicionais e pagam suas contas com publicidade ou assinaturas ou venda de
conteúdos premium tendo estruturas de custo mais enxutas e
isso se deve em grande medida à estrutura organizacional interna bastante
diferente da tradicional, mais simples, menores e com menos níveis
hierárquicos. Sobreviver autonomamente é ao mesmo tempo um mérito e uma
imposição de sua condição, que impõe características peculiares na definição de
todos os âmbitos de sua atividade, da escolha de conteúdos até a abordagem de
público alvo, passando pelo tamanho dos custos de pessoal e infraestrutura.
Outros
sites que são referência jornalística na web, mesmo sendo de propriedade de
empresas de jornais impressos, têm redações independentes, como o Guardian, New
York Times e o site do jornal inglês Daily Mail, campeões
de audiência, tratados como entidades autônomas, que devem atender a
pressupostos semelhantes aos de outros sites independentes para sobreviver: ser
mais enxutos ou econômicos, ágeis, pagar suas contas com suas receitas e dar
lucro para crescer.
Ao integrar suas redações, especialmente ao integrá-las sob a
hegemonia do veículo tradicional (que afinal, sob o seu ponto de vista ainda é
hegemônico, pois é quem paga a conta), as empresas jornalísticas tradicionais
no Brasil submetem as virtudes estratégicas das empresas jornalísticas
contemporâneas aos vícios das empresas da velha guarda, numa paráfrase
invertida de La Rochefoucauld, segundo quem a hipocrisia é um tributo que o
vício paga à virtude; nas redações integradas, as virtudes dos novos meios
pagam tributos aos vícios dos meios antigos.
O
jornal do futuro é o jornal do passado
Jornais com baixa circulação, dependentes quase exclusivamente
das receitas de venda dos exemplares para pagar suas contas; por venderem
poucos exemplares, estes têm custos unitários de produção muito altos, a
empresa não tem escala; por terem custos de produção altos e tende que
cobri-los integralmente com as receitas de venda, o “preço de capa” é
necessariamente caro; para manter baixos custos de produção, os jornais ão
pequenos, publicam poucas páginas, consomem uma quantidade relativamente
reduzida de papel de imprensa; por isso mesmo, necessitam de equipes editoriais
reduzidas, compostas por poucos jornalistas; para justificar a compra de um bem
caro como são os jornais, os leitores exigem uma absoluta pertinência do
conteúdo a suas necessidades, que torna o jornal uma espécie de bem de primeira
necessidade para esses consumidores; como tal, os conteúdos tratam de temas
específicos, que compõem o universo de interesse de certo público, como
necessidades comerciais, filiação política ou religiosa, dia a dia de uma
vizinhança, etc.
Esses jornais podem ser encontrados como paradigma de periódicos
em várias partes do mundo até meados do século 19 e mesmo depois em países de
economia menos dinâmica. Até hoje eles existem às mancheias embora não sejam os
modelos referenciais do meio jornal, que desde o final do século 19 são os
jornais de massa, com circulações elevadas, custos unitários baixos, que buscam
atingir públicos variados e que portanto tratam de inúmeros assuntos em suas
grandes edições de muitas páginas, produzidas por várias dezenas de
jornalistas, frequentemente centenas, organizados como proletários em linhas de
montagem nas fábricas de jornal. Esses jornais são úteis a uma gama grande de
leitores para quem não chegam a ser fundamentais, um gênero de primeira
necessidade, mas como seu preço de capa é relativamente barato, muitos o
compram; para falar com todos eles e atender seus fiderentes perfis de
interesse, os jornais publicam informações sobre inúmeros aspectos da vida
humana, e textos que buscam não revelar filiação a qualquer das tribos ou
religiões do mundo de seus leitores; em questões polêmicas ou idiossincráticas,
esses jornais de público variado e interesse geral tendem a publicar textos de
autores diferentes como visões antagônicas, de forma a representar diferentes
correntes de pensamento representadas em seu conjunto de leitores. Como
circulação elevada e um público numeroso, os jornais são usados por um grande
número de anunciantes para atingir aquele universo leitor, o que garante receitas
de publicidade que pagam grande parte dos custos das empresas, por vezes a
totalidade.
Leão Serva –
jornalista, professor de Ética e Legislação Jornalística
Fonte: site Observatório da Imprensa