Não estamos equipados para tanta
complexidade
Precisamos do presente mais valioso de todos: tempo livre.
O mundo está indo para o ralo.
Democracias quebradas,
liberalismo econômico que só atende aos mais ricos, extremos de temperatura e
clima, cada vez mais desinformação e desigualdade inclusive em como se faz
ciência (eu volto a isto na próxima coluna, prometo).
Por quê?
Eu me atrevo a
arriscar uma resposta bastante simples: a complexidade galopante do mundo que
estamos criando hoje excede em muito o tempo que temos disponível para aprender
a lidar com ela.
Vejo o problema nas portas que
deixamos se fecharem a torto e a direito exatamente porque perdemos o controle
da velocidade em que geramos aquilo que um dia trouxe novas oportunidades
àquela que, olhando para trás, chamamos de nossa espécie: tecnologia.
Falo da tecnologia de maneira geral, que colocou em movimento a bola de neve do
nosso destino ao transformar em polpa alimentos até então duros e difíceis de
comer e nos dar o presente mais valioso de todos: tempo livre.
Por definição, tecnologia é tudo
aquilo que gera tempo livre para fazer outras coisas e usar nossos neurônios
criativamente.
No caso da história humana, a tecnologia tem sido triplamente
transformadora porque mamíferos com mais neurônios (cortesia número um da
tecnologia) têm cada vez mais capacidade de resolver problemas aqui e enxergar
novos ali (cortesia número dois) e vidas cada vez mais longas para continuar
enxergando e resolvendo problemas (cortesia número três).
Elefantes têm um monte de
neurônios, mas comem grama, então sua realidade é não ter tempo para nada além
de comer o dia todo.
Humanos, ao contrário, são aqueles primatas que inventaram
truques para comer a energia de que precisam mais rápido, e assim foram ficando
ao mesmo tempo mais capazes tanto de facilitar sua própria vida quanto de...
complicá-la.
A razão é exatamente a mesma que
explica nenhum adulto ainda gostar de jogo da velha ou damas: o que era
dificuldade, mas a gente aprendeu a resolver rápido, não tem mais graça
nenhuma, porque o esforço não vale mais a pena quando não há nada de novo ali
para ser aprendido. Por isso, o que todo animal quer é sarna para se coçar.
O problema é que, para o animal
humano, a sarna que a gente quer coçar é a própria tecnologia.
Como aprender a
usar a da vez é necessário e divertido, usamos o tempo livre de que dispomos
graças à tecnologia para criar e usar... ainda mais tecnologia.
Nossa história
moderna é a bola de neve resultante dessas conquistas que se retroalimentam —e
que agora está virando uma avalanche que cada vez menos gente dispõe das
habilidades para entender.
Interromper a avalanche, ou ao
menos mitigar seu estrago, exige cidadãos que aprendam a fazer bom uso do tempo
livre que a tecnologia lhes dá: cidadãos que usem esse tempo para olhar para
trás, olhar ao redor e um ao outro, para aprender a lidar com a complexidade de
várias verdades contraditórias do mundo moderno e, sobretudo, para se manterem
inteligentes.
Pois inteligência é a capacidade de agir para manter
portas abertas, e nossa incapacidade crescente de lidar com um mundo cada vez
mais complexo torna a humanidade burra, tomando decisões que fecham portas para
o seu próprio futuro —exatamente como o mau uso da tecnologia que um dia nos
tornou humanos hoje apenas nos torna gordos.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).