Tanto 'autista' quanto
'Asperger' têm seus problemas
Tudo pode ser bom e ruim ao mesmo tempo, a gente é que se vire.
Uma reportagem do New York Times publicada pela Folha nesta
segunda-feira (26) comenta o
fato de várias condições na medicina levarem o nome dos seus descobridores.
Esses termos, como síndrome de Asperger, certamente pecam por não serem descritivos —mas com
frequência geram críticas por perpetuarem o nome de quem, em retrospecto, não
era lá gente muito boa.
Uma fonte dessas críticas é a historiadora e mãe de uma
criança autista Edith Sheffer, da Universidade da Califórnia em Berkeley. Seus
argumentos estão em seu livro "Asperger’s Children", e também no meu
guia favorito, Neurotribes, do jornalista Steve Silberman.
A expressão "síndrome de Asperger" perpetua
explicitamente, sim, o nome do seu descobridor, psiquiatra austríaco que, antes
de Hitler conseguir tomar conta das Europas e se delegar o direito de
determinar quem fica na Terra e quem é despachado da vida, se deu conta de que
certas "crianças problemáticas" não tinham problema algum, e sim
qualidades —o problema estava nos adultos ao seu redor que esperavam que todas
as crianças fossem iguais. Mas Sheffer e outros questionam as intenções de Hans
Asperger ao "colaborar" com o governo nazista —tal qual Oscar Schindler, Hasperger argumentou
pela "utilidade" dos seus "pequenos professores" para o
império crescente, e, como ele, suas crianças mantiveram suas vidas
"colaborando" com o governo.
Em contraste, o termo
"autista" não propaga o nome do psiquiatra cretino que deu nome ao
conceito de que "mães frias" eram culpadas pelas esquisitices dos
filhos, um cretino que me irrita tanto que tenho que consultar seu nome toda
vez, porque meu cérebro se recusa a honrar o indivíduo com meus neurônios. Leo
Kanner, isso.
A história e os historiadores
são rápidos em passar julgamento, como a maioria dos humanos —curiosamente, os
neurotípicos não no espectro, seja este Asperger ou autista, rápidos em aplicar
seus valores antes de apurar os fatos e atentar a eles e somente eles.
"Autista" é uma
denominação descritiva cujo contrário é "alista", do grego
"allo", "o outro".
Feita a ressalva de que déficit
intelectual NÃO faz parte do autismo, ainda que possa ser co-existente, "autista" é um termo muito
útil. Mas perpetua o legado do cretino cujo nome meu cérebro já esqueceu de
novo.
Aspie, ou Asperger, por sua vez,
honra um cara que teve a sacação de que crianças em vários pontos desse
espectro NÃO são doentes, retardadas, culpa das mães, nem têm um distúrbio que
precisa ser consertado.
Elas apenas precisam ser vistas de verdade, reconhecidas,
respeitadas, e tratadas com as suas particularidades em mente, canhotas mentais
num mundo de destros.
Gosto de me dizer Aspie. Gosto
que um cara chamado Hans Asperger um dia quis melhorar a vida de crianças como
a que eu fui, e não "curá-las" da sua esquisitice, sequestrá-las em
sanatórios, ou inventar um jeito delas não existirem mais (que mundo sem graça
seria).
Sim, ele "colaborou" com os nazistas. Mas podia ter fugido
quando pôde (e ele pôde) e abandonado sua clínica e crianças.
Também gosto de me dizer
autista, embora isso ainda seja recebido com estranheza porque não me sacudo o
tempo todo (minha mãe cuidou desta parte, me fazendo parar com o hábito de
sacudir os joelhos quando sentada; hoje apenas toco refrãos de música em loop
na minha cabeça, é bem discreto) nem evito o olhar das pessoas (talvez olhe até
demais nos olhos do meu interlocutor).
Mas faz parte do meu trabalho de
comunicadora científica chamar a atenção das pessoas exatamente para o que não
é como o julgamento rápido delas esperava, ainda que isso perpetue o nome
associado às ideias vis e misóginas do cretino supra-mencionado que acusou as
mães e trancafiou suas crianças mentalmente canhotas.
Assim é viver num mundo
complexo, cheio de partes em movimento e que se encaixam em mais de uma
narrativa.
Voto por respeitarem também este tipo de diversidade, e deixarem
cada canhoto mental escolher em paz como se identifica e como quer ser chamado,
sem ser julgado por isso.
Já basta vocês, neurotípicos, ditarem as regras desta
democracia cotidiana da vida mental em que vocês são maioria, mas não eleita
por ninguém...
SUZANA HERCULANO-HOUZEL -
bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).