Quem pensa mal lê mal e escreve mal. Pensar não dói, caro
leitor. Vamos lá! E, se quiser um bom treino ...
Está no programa de redação da Fuvest: "A redação deverá
ser, obrigatoriamente, uma dissertação, na qual se espera que o candidato
demonstre capacidade de mobilizar conhecimentos e opiniões, argumentar
coerentemente e expressar-se de modo claro, correto e adequado". É óbvio
que não é só no vestibular que se deve "argumentar coerentemente";
isso é necessário em qualquer manifestação de pensamento.
Como se sabe, dissertar é defender uma tese. Por incrível que
pareça, ainda há colegas que dizem aos seus alunos que eles não devem "dar
opinião" ou que devem assumir posição neutra, o que implica "mostrar
um ponto a favor e outro contra". E concluir pelo "muro". Ai,
ai, ai...
Tomemos como exemplo o tema do ano passado, baseado numa peça
publicitária de um cartão de crédito ("Aproveite o melhor que o mundo tem
a oferecer com o cartão de crédito X"). Assim terminava o enunciado:
"Procure argumentar de modo a deixar claro seu ponto de vista sobre o
assunto". Viu que é preciso, sim, apresentar um ponto de vista, isto é,
defender uma posição?
"E se o examinador tiver uma posição diferente da
minha?" Nenhum problema, desde que ele não seja um doido varrido.
Examinador decente não julga o ponto de vista do candidato; julga como o
candidato apresenta esse ponto de vista. É aí que entra o item "argumentar
coerentemente", o que, em outras palavras, significa que os argumentos
precisam sustentar-se, ter nexo e ser imunes a contra-argumentos.
Quer um bom exemplo? A recente tentativa do ministro da Fazenda
de adiar a obrigatoriedade do airbag e do ABS nos carros nacionais. O argumento
do ministro (e dos supermodernos sindicalistas)? Com o fim da produção dos
automóveis nos quais a introdução dos equipamentos de segurança seria
tecnologicamente inexequível ou economicamente inviável, X funcionários
perderiam o emprego. Deus do céu!!!
Como bem me disse o jornalista Luís Perez, especialista em
automóveis, "quando aventaram a possibilidade de prorrogar o prazo, senti
vergonha alheia". Também senti.
O ministro e os sindicalistas não sabem que a manutenção desses
(poucos) empregos não justificaria os altos gastos do Estado com os tratamentos
e as pensões resultantes dos acidentes, ferimentos e mortes que seriam evitados
com o ABS e o airbag? Esse pessoal não sabe fazer contas? É também insensível e
incapaz de relacionar lé com lé e cré com cré? A genial posição do ministro e
dos sindicalistas constitui um forte exemplo de argumento incoerente, insustentável.
Zero para eles!
A respeito da obrigatoriedade do airbag e do ABS, Hélio
Schwartsman escreveu nesta Folha o texto "Paternalismo
Libertário" (21/12/2013), em que discutiu o aspecto filosófico da questão.
Não lembro a razão pela qual antes de ler o texto de Hélio li alguns
comentários sobre ele. Macaco velho, pensei com os meus botões: "O Hélio
não deve ter dito uma bobagem dessas". E fui ler o texto. Bingo! Para
variar, muita gente não entendeu patavina. Hélio não é contra a obrigatoriedade
do airbag e do ABS; é a favor do livre arbítrio, o que, no caso, não inclui o
ABS (porque esse equipamento pode evitar danos a terceiros). Hélio diz que,
para que se conservassem as virtudes públicas da obrigatoriedade e se
preservasse a liberdade individual, bastaria exigir do interessado em abrir mão
do airbag (em troca de preço menor dos automóveis) a assinatura de formulários
que isentassem os fabricantes e o Estado de qualquer responsabilidade por sua
escolha. Para variar, muita gente meteu os pés pelas mãos na hora de ler o
texto do grande Hélio e acabou vendo nele relações e posições que não há.
Não é à toa que muita gente vai mal não só na redação, mas
também nas questões de compreensão de texto. Quem pensa mal lê mal e escreve
mal. Pensar não dói, caro leitor. Vamos lá! Coragem! E, se quiser um bom
treino, fuja dos "debates" nas "redes sociais". A bobajada
é de doer. Os argumentos são de uma incoerência assustadora! É isso.
Pasquale Cipro Neto - professor de Língua
Portuguesa, escritor, colunista do jornal Folha de São Paulo.
Fonte: jornal Folha
de São Paulo