Usar somente tecnologias digitais
pode nos afastar do prazer de construir algo com as mãos
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Eu e meu companheiro de mesa ao jantar começamos a
trocar figurinhas sobre nossas respectivas palestras que aconteceriam no dia
seguinte. De campos diferentes, não reconhecíamos o nome um do outro. Contei-lhe
sobre todas as evidências que temos encontrado de que nossa espécie é apenas
mais um primata, dona do maior número de neurônios no córtex cerebral de
qualquer animal, mas graças a isso capaz de criar, transmitir culturalmente e
acumular tecnologias e conhecimento que nos tornam uma potência cognitiva.
Uma das nossas conquistas cognitivas, através de
decisões inteligentes, é a boa qualidade de vida, que inclui a sensação de
felicidade. Essa, por sinal, era a praia do meu comensal: como lidar positivamente
com o estresse (ao invés de evita-lo), encontrar e cultivar o bem-estar.
Rapidamente convergimos sobre nossa impressão de
que jornalistas, e boa parte da sociedade em geral, gostam de demonizar a
tecnologia como um mal da vida moderna –quando a tecnologia, por definição
qualquer processo, sistema ou objeto que ajuda a resolver um problema, é
intrinsecamente positiva; o problema é o uso que escolhemos fazer dela.
Por exemplo: na opinião do meu vizinho de jantar,
poder usar tecnologias digitais é maravilhoso, mas um problema é que, usando
somente isso, nossos feitos cognitivos passam a ser etéreos, intangíveis,
guardados em nuvens. Em suas pesquisas, ele descobriu que uma das maiores
fontes de prazer para nós humanos é construir algo com as mãos. E poucas
pessoas ainda fazem isso em seu dia a dia.
Pensei imediatamente em meu prazer
recém-descoberto: a jardinagem. Fui menina de apartamento, e agora, morando em
Nashville, pela primeira vez tenho um jardim. Num dia de estresse intenso por
conta de um problema de saúde, precisando esvaziar a mente e me acalmar, fui
comprar tijolos, terra e mudas para começar um canteiro. Três horas e um bocado
de suor depois, eu era outra pessoa. Aquela noite, e ao longo dos dias
seguintes, fui várias vezes namorar meu novo canteiro, com folhagens roxas e
verdes cercadas de suculentas pequeninas.
Em meu trabalho, construo conhecimento que
ocasionalmente ganha vida em papel, materializando-se em artigos e livros. Meu
jardim, ao contrário, é tangível toda vez que olho pela janela ou coloco meu
chapéu e luvas.
Meu companheiro de jantar aprovou. Era Tal
Ben-Shahar, autor de best-sellers sobre felicidade e professor do curso mais
concorrido que já houve em Harvard, sobre psicologia positiva. Acho que eu
passaria no seu curso...
Suzana Herculano-Houzel - neurocientista, professora da UFRJ, autora do
livro "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante)
Fonte: www.suzanaherculanohouzel.com