Nós as mulheres criando meninas


Na comparação, sempre estamos perdendo para alguém. Se você é homem, branco, rico e primeiro-mundista, pode ter fantasias homicidas quando seu vizinho estaciona um carro melhor que o seu na garagem (o que explica a inesgotável ganância de alguns bilionários). A insistência em nos compararmos continuamente com os outros, inconformados com nossa mediocridade existencial –que a comparação tenta despistar–, é uma das motivações básicas da violência humana. Acalentar a fantasia de que existiria um humano acima dos demais é a fonte do sonho fascista.

Quando criança eu queria ser menino sempre que esbarrava nos inexplicáveis privilégios de meus irmãos, cuja justificativa humilhante, era: "ele pode porque ele é menino" e seu duplo, "você não pode porque você é menina". Quando as meninas descobrem o mundo dos privilégios masculinos, têm que lidar com a injustiça, com o ressentimento e elaborar a perda social ligada ao sexo.

Todas as meninas têm necessariamente um pai (nem que seja via banco de esperma), eventualmente um padrasto e certamente amigos marcando para elas os tipos de homens que as mães, por razões inconscientes, quiseram e querem ter a seu lado. Nesse caso, podemos ter o discurso feminista mais politicamente correto e, ainda sim, mostrar para nossas filhas que escolhemos ter ao nosso lado homens que nos subestimam e humilham, por exemplo. Por outro lado, casais ditos antiquados podem exemplificar relações igualitárias entre gêneros.

 

Recentemente, minha filha me contava que um colega, que falou algo considerado misógino no coletivo feminista da escola, foi achincalhado. Ao que ela argumentou que seria bem melhor ele falar, pois só assim saberiam seus argumentos e poderiam pensar juntos, talvez demovê-lo, talvez entender sua lógica.

Essa singela experiência, pinçada entre outras que as meninas trazem, me lembra que o pior que podemos fazer nos debates feministas é constranger o diálogo.

O feminismo veio para ficar e seus avanços são incontornáveis, embora metade da população mundial ainda seja oprimida por ser mulher e a maioria absoluta de nós viva em condições deploráveis, por esse mesmo motivo. Mas como todo movimento, o feminismo requer um debate permanente, que revele suas contradições internas e avance. Militâncias, quando buscam nivelar suas opiniões criando um "nós" supostamente homogêneo e consistente, negam as singularidades e correm o risco de se tornarem tão fascistas quanto o que tentam combater. O suposto embate França -EUA é relevante porque, em nome da mídia, as reflexões de todos os pensadores de dois países foram reduzidas a duas ou três falas pasteurizadas e superficiais. A virulência de algumas colocações revela o temor de lidar com as diferenças dentro do movimento.

A questão da judicialização das relações humanas –se um chefe pode ficar numa sala a sós com sua funcionária ou não (serve para chefes lésbicas também!?), por exemplo– é alarmante e não pode ser confundida com as conquistas de leis imprescindíveis como a Lei Maria da Penha, para citar uma.

As mulheres não desejam todas as mesmas coisas, lutemos assumindo isso. Assumindo que o pronome "nós", quando se trata de humanos, só justifica seu uso em defesa do "nosso" direito de escolha.

Vera Iaconelli - psicanalista, fala sobre relações entre pais e filhos, as mudanças de costumes e as novas famílias do século 21.

Fonte: coluna jornal FSP

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