Pontos
cegos na priorização dessa fase precisam ser considerados.
Todas as campanhas pela primeira infância são fundamentais e bem vindas, pois baseiam-se
no dado crucial de que os primeiros anos são janelas de oportunidade que se
fecham e que é infinitamente mais rentável investir no começo da formação do
que se haver com as distorções psíquicas e sociais de uma geração que não foi
bem assistida.
O documentário “O Começo da Vida”, do qual tive
o prazer de participar, tem o Nobel de Economia James Heckman dando a proporção de 7 para 1 do retorno de
investimentos na primeira infância. Nada mal como justificativa para um mundo
que pouco se interessa pela humanidade, mas não tira os olhos do lucro.
Mas há furos importantes na forma como pretendemos
priorizar a infância, uma vez que, como disse Donald Winnicott “there’s no such a thing
as a baby” (não existe isso que chamamos de bebê). O raciocínio é simples: sem
cuidadores não há infância. O que está difícil de enxergar nessas campanhas são
os paradoxos envolvidos.
Se quisermos priorizar a infância, precisamos proteger as famílias —que na
atualidade se concentram em mães vulneráveis que, frequentemente, perdem a
guarda dos filhos para um Estado omisso.
Mulheres são o fim da cadeia alimentar social —são destituídas do poder
familiar, agredidas, estupradas e assassinadas diariamente— e são também as
responsáveis pela chefia de 48,2% dos lares brasileiros (Ipea, 2019). Cuidar da
infância é cuidar delas e de seus companheiros, quando houver. Estamos bem
longe de fazer isso.
A segunda questão é um paradoxo dentro do outro. Afirmar que cuidar da infância
é cuidar da mulher reproduz, erroneamente, a ideia de que crianças são um
assunto de mulheres.
A nova geração de cidadãos da qual o país depende para o futuro da Previdência,
da segurança pública, enfim, para a construção de uma sociedade, ao ser
entendida como assunto de mulheres e mães, revela um flagrante de misoginia e
injustiça social histórica e datada.
Então, priorizar a infância é cuidar urgente —e circunstancialmente— de mães
que realizam o oneroso trabalho reprodutivo, embora não remunerado. Mas, acima
de tudo, reconhecer que esse não é um assunto delas, mas de todos: empresas,
Estado e sociedade civil.
Se quisermos que empresas se “sensibilizem” (leia-se, sintam no bolso) com o
descalabro a que estão submetidas as mulheres hoje, devemos, enquanto sociedade
civil, exigir selo de responsabilização com a nova geração.
O que vem sendo feito com a ecologia —e se tenta fazer
com a cadeias produtivas na indústria têxtil— precisa ser aplicado às condições
dadas a pais/mães (e toda combinação familiar possível) como licenças
maternidade/paternidade condizentes com a tarefa, creches, salários iguais,
garantias empregatícias.
O Estado deve comparecer junto às famílias socialmente e
etnicamente vulneráveis muito antes da destituição do poder familiar —ato que,
na maior parte das vezes, vem coroar com requintes de crueldade o descaso
governamental.
Como sociedade devemos denunciar que a ideia de que os filhos são das mulheres
—mães, avós, babás e professoras— é um flagrante de omissão da
responsabilização social. Como profissionais com filhos precisamos parar de
pedir desculpas por nos dedicarmos aos pequenos —isso vale para pais e mães.
Priorizar a infância esbarra no nosso conhecido desprezo pelas mulheres e pelo
fato de que elas têm sido erroneamente consideradas responsáveis sozinhas pela
nova geração.
Campanhas pela primeira infância não podem replicar esse duplo equívoco.
Vera Iaconelli - diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar
na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em
psicologia pela USP.
Fonte: coluna jornal FSP