A paisagem desmedida da língua, que nenhum ponto de vista abarca
em sua inteireza, está cheia de coisas que parecem ser, mas não são. Vale a
pena dar um zoom em algumas dessas arapucas, que as patrulhas do sabichonismo
adoram explorar para exercer seus mesquinhos poderes sobre falantes
desavisados.
Pode parecer que a expressão correta é "um peso e duas
medidas", mas não é. O certo é mesmo aquilo que todo mundo sempre falou,
"dois pesos e duas medidas". Está na Bíblia –que, se não tem a
palavra final em questões morais e de costumes, certamente pode ser tomada como
fonte legitimadora de uma expressão que ela própria difundiu.
Pode parecer também (não acho que pareça, mas muita gente
discorda de mim) que o provérbio "Quem tem boca vai a Roma" contém um
erro constrangedor, pois o certo é "Quem tem boca vaia Roma", ou
seja, exerce o saudável direito de protestar contra a tirania dos césares. Só
que isso é uma falácia. Quem sabe perguntar chega aonde quiser, eis a moral do
ditado. Como aliás sempre soubemos, até surgirem os sabichões. Vaia neles!
Pode parecer ainda que a palavra "aluno" tem origem
num vocábulo latino que quer dizer "sem luz", motivo pela qual deve
ser evitada, uma vez que trai uma concepção pedagógica anacrônica em que o
professor sabe tudo e o estudante não sabe nada. Repetida até por educadores,
essa "tese" é uma bobagem. O latim "alumnus" quer dizer
criança de peito e, por extensão, discípulo, aquele que precisa ser nutrido
para crescer. Só isso.
Pode parecer que a contração "num", empregada no
parágrafo anterior, é um coloquialismo que, na sua informalidade de bermuda e
chinelo, deve ser evitado a todo custo na linguagem escrita. É o que vêm
repetindo muitos professores nos últimos anos. Não procede. Um pouco de leitura
nos ensina que autores clássicos da língua recorreram à eufonia de
"num" e "numa" em textos apuradíssimos.
Pode parecer (e neste caso reconheço que parece mesmo) que a
inocente palavra "coitado" tem em sua origem um sentido chulo e
talvez violento, o daquele que foi submetido a coito, quem sabe contra a sua
vontade. Não é verdade. As duas palavras têm origens latinas distintas: coitado
veio de "coctare", atormentar, enquanto o coito nasceu do verbo
"coire", fazer sexo com. Parentesco zero.
Pode parecer (isso não deveria poder, mas parece que pode) que
quando dizemos "Não vejo ninguém" estamos dando curso a uma grosseria
ilógica da língua portuguesa, sem perceber que uma negação anula a outra e que,
se não vemos ninguém, alguém nós vemos. A verdade é que não existe nada mais
tosco no mundo do sabichonismo do que supor que línguas naturais sejam
submissas à linguagem matemática. A negação dupla, que reforça em vez de
anular, é um recurso consagrado e de raízes profundas no português –e não
apenas nele.
Pode parecer, enfim, que nossa língua detém o recorde mundial de
pegadinhas, idioma dificílimo que só pós-doutores conseguem falar sem
escorregar a cada frase. Embora haja razões históricas para essa percepção,
trata-se, em termos objetivos, de mais um engano. Se nos livrássemos dos
patrulheiros sabichões e sua usina de erros imaginários, a paisagem já ficaria
bem mais acolhedora
Sérgio Rodrigues - jornalista e escritor,
publicou "Viva a língua brasileira!" (Cia. das Letras), em 2016.
Fonte: coluna jornal FSP