Estou sentado diante do computador, meio sonolento, esperando os numerais na tela indicarem oito horas para me conectar. "Bom dia, grupo!", escrevo no chat, a título de
quebra-gelo. Não saber se alguém acha graça ou se estão apenas rolando os olhos
em protesto silencioso pelo humor de tiozão é apenas o primeiro mistério
daquele espaço. Outros — tecnológicos, pedagógicos, administrativos, familiares
— aparecerão, inevitavelmente, ao longo daquela uma hora e quarenta minutos de
aula online.
Não sou um entusiasta da
metodologia remota. Entendo as implicações negativas, entre as quais a mais
dramática é o aumento da desigualdade entre quem pode e quem não pode acessar o
mundo digital. Sua adoção indiscriminada mobiliza justa indignação diante da
insensibilidade de um governo ruinoso, temática que a um só tempo dialoga e se
afasta da minha vivência pessoal com as tecnologias da educação durante a
pandemia. Minha experiência é um ponto a anos-luz de distância da curva: a
instituição a que pertenço preserva a liberdade de cátedra, oferece suporte e
treinamento; alunos e alunas têm boa condição de conectividade e, como regra,
maturidade para entender que o mundo — nossas aulas incluídas — simplesmente
não será como antes.
Acho que sabem que estamos trabalhando
muito mais, às voltas com novidades indomáveis no front profissional e acúmulo
de tarefas no ambiente doméstico, em que a participação não requisitada dos
filhos durante uma ou outra live é um despiste fofinho de que as coisas, da
porta para lá do escritório improvisado, não estão assim tão controladas.
Sim, pode ser uma das falsas
impressões no novo mundo mediado por telas. De todo modo, me agarro a ela: todo
mundo está fazendo o que pode para singrar pela tormenta com o barco rústico
que chamamos educação. Há respeito por cada remada; e tolerância, mesmo com os
movimentos ainda desajeitados.
Volto ao computador. Penso no
dia em que poderemos voltar à educação olho no olho, com as pessoas se vendo,
se ouvindo, se falando. Em seguida, me pergunto: para quê, mesmo? Em nome de
quê nos dirigimos, por pelo menos 200 dias letivos, a uma sala cheia de gente,
enfrentando o transporte lotado, gastos com alimentação, cobranças e conflitos
bem concretos, quando podemos, como ouvi de um aluno, acordar um minuto antes
da aula, assisti-la de pijama e depois cuidar da vida sem perder tempo.
Em "Psicologia e
Pedagogia", Jean Piaget, mais influente nome da educação no século
passado, se vê às voltas com questão semelhante ao avaliar a "máquina de
ensinar" — um protocomputador desenvolvido pelo psicólogo Burrhus Frederic
Skinner nos anos 1950 para auxiliar, de forma automática, a aprendizagem da
matemática. Piaget, ardoroso defensor da aprendizagem ativa, não desdenha da
máquina. Seu comentário: "é possível que o emprego das máquinas de
aprender economize um tempo que seria mais longo com o emprego dos métodos
tradicionais e aumente, por conseguinte, as horas disponíveis tendo em vista o
trabalho ativo."
É uma evidente provocação às
metodologias tradicionais. De fato, há pouca diferença entre um professor
passando slides por uma tela, falando por horas a fio, e o mesmo professor
fazendo a mesma coisa presencialmente, diante de uma sala de aula. Se a volta
ao convívio social for para isso, não teremos aprendido grande coisa com a
tempestade.
A parte final do comentário é
reveladora: aumentar o tempo disponível para o trabalho ativo. Para Piaget, a
atividade consiste em favorecer o trabalho intelectual de cada estudante, por
meio de desafios que o levem a avançar de um nível de conhecimento para outro
mais avançado. Orientados pelo professor ou professora, individualmente ou em
grupo — onde pode-se aprender enormemente pelo estímulo coletivo e seus
controles mútuos - crianças e jovens propõem hipóteses de resolução de
problema, testam-nas, comparam com as soluções de colegas, entendem o que deu
errado e como melhorar. Em uma palavra, aprendem.
Debates, tarefas instigantes
para cada classe (em muitos casos, adaptadas para cada aluno ou aluna),
pesquisas com sentido, projetos com impacto social. Desse ponto de vista, a
educação presencial faz toda a diferença. Torna-se insubstituível para a
educação.
No campo das teorias da
educação, nada disso é novidade ou revolucionário. Em muitas salas de aula e no
imaginário popular, ainda é. A disrupção causada pela pandemia pode mudar tudo
ou nada nessa e em outras searas da vida humana. Em meu otimismo moderado,
espero que ao menos algo mude, e para melhor. Vou começar por mim.
RODRIGO RATIER - jornalista
e professor universitário na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. É também
autor do blog Em Desconstrução, de Universa, coordenador do blog coletivo
Entendendo Bolsonaro, e fundador e gestor do curso online contra fake news
Vaza, Falsiane (www.vazafalsiane.com)