Inibição, impulsos e as bobagens
que fazemos
Movimentos humanos de destruição mostram que balé entre desejo e
contenção está fora de ritmo.
Aconteceu em um supermercado: um
homem apalpou com muita malícia uma mulher.
Os dois não se conheciam. Fez-se,
então, o epicentro de um tumulto que tomou conta das prateleiras e caixas.
Demorou muito, muito mesmo, até se descobrir que o homem não era um desavergonhado
assediador, mas um doente.
O ato violento foi o primeiro sinal indisfarçável de
um câncer cerebral, precisamente no córtex
pré-frontal, até então não diagnosticado.
O córtex pré-frontal é um grande centro nervoso.
Conectado a muitas outras regiões cerebrais, ele perfaz uma vasta rede de
influências.
Essas conexões organizam nossas interações com o mundo,
suas atividades transformam-se em planos e em enfrentamentos aos imprevistos.
Esse núcleo é essencial para que persistamos ou desistamos, já que calibra as
pressões internas de nossas volições e inibições.
A inibição surgiu em textos
científicos para representar o mecanismo pelo qual o intelecto controla as
paixões e vence os impulsos.
Em 1649, Descartes escreveu: ‘‘... se a raiva
faz a mão se levantar em ordem de atacar, o arbítrio normalmente pode contê-la;
se o medo incita as pernas a fugirem, o arbítrio pode pará-las".
Esse
conceito está amarrado à moral da filosofia clássica, bem sintetizada nas
palavras de Franz Gall (1758-1828), o controverso pioneiro em dizer para que
serve cada parte do cérebro: "as leis da natureza decretam que as
faculdades de uma ordem inferior devem obedecer às de uma ordem superior."
As ideias neurocientíficas embrionárias sugerem que o arbítrio e a consciência
produzem a inibição. Logo, para exercer controles inibitórios é necessário
autoconsciência.
Mas, de fato, basta um neurônio.
Essas células frequentemente inibem a atividade de seu par ou de outros alvos
corporais.
Portanto, uma singular estrutura, muito antes de a moral ser
inventada, já havia iniciado a inibição em algum de nossos ancestrais. De forma
mais macroscópica, várias áreas cerebrais interrompem as funções de outras.
As
principais expressões desse processo são a inibição cognitiva e a inibição
comportamental.
A inibição cognitiva é a nossa
capacidade de resistir à distração, seja esta uma saliência do ambiente ou um
pensamento inadequado ou irrelevante.
Está no meio de nós para suprimir
interferências, à custa de muito ou mínimo esforço intencional. E em outras
vezes é inconsciente, já que nosso cérebro involuntariamente filtra o que será
sugado pela memória.
A inibição comportamental controla impulsos que violam a
regra do momento e nos prepara para as mudanças do meio.
Graças às minhas claras
explicações, você, querida e racional leitora, já sabe como um tumor cerebral
corrompe os mecanismos de contenção neural.
Com esse repertório a mais, em uma
festa você terá a opção de cutucar a amiga ao lado para lhe falar que um problema
no córtex pré-frontal pode suprimir a habilidade de interromper pensamentos
inadequados, o que resultará em anseio incontrolável, o qual será finalmente
expresso em um ato violento.
Sua amiga irá concordar e complementará que
a violência pode surgir da impulsividade
desmedida, quando a falha frontal não garante mais contingências.
Infelizmente, as duas talvez
estejam erradas.
Alerto as senhoras de que eu fiz foi acender um fósforo contra
uma gruta inteira. Tenham prudência, a neurociência é limitada e decodifica o
cérebro em generalizações.
Fora dos laboratórios, o estado mental continua
muito inacessível. Outras explicações para o que aconteceu no supermercado são
bem-vindas e talvez sejam mais acuradas.
A perda de controle mental causa
também impulsividade, uma predisposição a reações rápidas e mal planejadas em
resposta a estímulos, sem que se pesem as consequências negativas
dessas reações.
Mas lembrem-se: a agressão frequentemente é um ato
deliberado e controlado.
É possível que o homem no supermercado
tenha perdido a capacidade de julgar e avaliado de forma otimista que a mulher
o aceitaria.
Nessa situação, a neoplasia fez o cérebro inibir o efeito de
informações do ambiente e de sua memória, que o alertariam da gênese de um
raciocínio torto.
Estranho? Nadinha. Isso acontece
o tempo inteiro, inclusive em cérebros normais. Tome seu exemplo, meu leitor
perseverante e tabagista.
Ao queimar um cigarro, você distorce riscos.
Dominado por um viés otimista, subestima malefícios e superestima alguns
efeitos positivos imediatos.
Dentro de nosso crânio, volição
e inibição dançam, e nosso comportamento segue qual dos bailarinos predomina.
Sem impulsos, cairíamos apáticos. Por outro lado, sem inibições, não
corrigiríamos nossos pensamentos e atos. Parece maravilhoso esse balé de nossos
neurônios.
Mas basta ler as notícias ou olhar da janela para ficarmos cientes
de que não é necessário haver um tumor cerebral para que façamos bobagens.
Dos
movimentos humanos de destruição partem provas de que esse balanço não deu
certo.
LUCIANO
MAGALHÃES MELO - médico neurologista, escreve sobre o
cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.