Ao senhor presidente, com toda a franqueza


Cartas a Lula ­ O Jornal Particular do Presidente e Sua Influência no Governo do Brasil, de Bernardo Kucinski. Edições de Janeiro. 464 págs., R$ 49,90; reproduzido do Valor Econômico, 30/12/2014; intertítulo do OI

 

Espécie de grilo falante do presidente Lula em seu primeiro mandato, o jornalista Bernardo Kucinski revela em livro os comentários e conselhos que diariamente fazia chegar ao seu conhecimento.

Os textos selecionados em Cartas a Lula, entregues em envelopes lacrados antes das 8h30, com frequência azedavam o dia do presidente. Foi o próprio Lula quem cunhou o termo “cartas ácidas”, utilizado na coletânea anterior, que reuniu o material produzido durante sua primeira campanha presidencial, em 1989.

Jornalista com papel relevante na imprensa alternativa que resistiu à ditadura militar, da qual é historiador, e ex­professor da USP, Kucinski, apesar de funcionário da Secretaria de Comunicação no período, tinha aparentemente a independência e o desapego ao cargo necessários para produzir um material contundente. É essa liberdade de escrever sem querer ou precisar agradar a este ou àquele que desperta o interesse pelas rebatizadas “cartas críticas”. O autor nota, a propósito, que “o aparelho burocrático do Estado não consegue produzir nada que a isso se compare. Especialmente em grau de franqueza”. Em sua avaliação, as cartas contribuíram para levar o contraditório para dentro do núcleo duro do governo.

Em três anos e meio de trabalho, entre janeiro de 2003 e junho de 2006, quando Kucinski deixou a Secom, foram escritas quase mil cartas. Por decisão de Lula, elas eram lidas também por cerca de 15 destinatários, que também as recebiam em papel impresso, e não por e­mail, para evitar vazamento na internet.

Embora as cartas abordassem muitos assuntos, do Fome Zero ao mensalão, passando pela transposição do rio São Francisco e pelos arquivos da ditadura, o alvo preferencial de Kucinski era a política econômica de cunho liberal da maior parte do primeiro mandato. A voz da consciência do “grilo falante” aconselhava o presidente a virar à esquerda.

Desde as primeiras cartas, o autor não dava trégua ao então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, responsável pelo conservadorismo econômico do governo. “Desmontava uma a uma as falácias neoliberais”, escreve o autor na introdução, referindo­se aos argumentos contra a elevação do salário mínimo. Kucinski conta ter sabido, por meio de um dos principais assessores de Lula, que as cartas haviam se transformado no “mais importante instrumento a se contrapor à influência de Palocci sobre Lula”. A partir dessa conversa, diz, “assumi com mais desenvoltura o combate ao paloccismo”.

Livro útil

Cartas a Lula se inscreve entre as obras de autores que estiveram próximos do centro do poder no primeiro mandato do presidente. Com recortes diferentes, essa literatura tem em comum a perspectiva de quem viveu o cotidiano do poder.

O livro de Kucinski tem maior parentesco com A Mosca Azul, de Frei Betto, assessor especial de Lula em 2003 e 2004, quando também desempenhou as funções de coordenador de mobilização social do Fome Zero, o programa antecessor do Bolsa Família. Mas também deve ser colocado na estante ao lado de Brasil ­ Primeiro Tempo, do então líder do governo no Senado, Aloizio Mercadante, focado em comparações estatísticas, e de Os Sentidos do Lulismo, de André Singer, porta­voz do presidente até 2007, com vocação mais acadêmica.

Se Lula tolerava a proximidade de Kucinski – o presidente o achava azedo como vinagre e quis demiti­lo várias vezes, como conta o próprio jornalista – é porque as cartas lhes eram úteis. Ele não duvida: se fossem dispensáveis ou carecessem de credibilidade, o presidente simplesmente as deixaria de ler.

O autor reivindica sua influência em uma série de atitudes de Lula. Um dos itens da lista, por exemplo, é a decisão do presidente de começar a criticar a imprensa depois de ler uma carta com explicações sobre os mecanismos de manipulação do noticiário. “De fato, notamos que estava havendo muita concordância entre o que a carta recomendava e o que acontecia no dia seguinte”, escreve Kucinski. “A impressão é que o presidente, além de viciado na ‘Carta Crítica’, resolveu descomplicar e decidir em cima das cartas.”

A imodéstia do autor não seria um problema se a conexão entre os conselhos das cartas e as decisões do presidente estivesse estabelecida com mais rigor. Ao apontar apenas a evidência cronológica, porém, Kucinski deixa de levar em conta que um chefe do Executivo está exposto a uma miríade de conselhos e sugestões que, no conjunto, contribuem para o encaminhamento de cada questão.

Algumas observações parecem um tanto exageradas. De acordo com o autor, sua “cobrança pesada” contra a “anomalia dos juros”, por exemplo, deixava Lula tão “nervoso” que ele mandou espaçar as reuniões do Comitê de Política Monetário do Banco Central “e assim elas permanecem até hoje”. Ora, em que pese a veracidade das informações sobre o teor da carta e sobre a decisão da periodicidade das reuniões do Copom, não seria possível demonstrar inequivocamente uma relação de causa­efeito entre os dois fatos.

O livro, de qualquer maneira, contribui para a historiografia do período ao mostrar como o primeiro governo Lula firmava suas convicções e tentava transmiti­las à sociedade. No capítulo dedicado ao mensalão, por exemplo, Kucinski registra sua opinião sobre a reação da imprensa, que coincide com a percepção que o governo endossaria. “As reportagens”, ele escreveu em 5 de julho de 2005, “não discriminam entre fatos maiores e menores, entre provas e suspeitas, entre relações de causalidade e meras ilações.” E conclui, acusando o golpe: “Esse tipo de fogo de saturação confunde o cidadão, mas também confunde a nós.”

Três semanas mais tarde, no dia 26, diante das informações de que o esquema mensalão não era exclusividade do PT, Kucinski escreveu: “A revelação pode mudar a percepção da crise aos olhos da classe C, que assiste à televisão, desde que rapidamente trabalhada junto aos formadores de opinião.”

Um dos meios sugeridos para atingir esse fim foi “estimular publicações como a agência Carta Maior e a CartaCapital a mergulharem na história”. Outro meio seria acionar a Radiobrás. No início de agosto, uma missiva avisava o presidente: “Fracassaram as tentativas de criar narrativas alternativas.”

As cartas críticas talvez não tenham tido todo o peso que Kucinski lhes atribui, mas o livro é útil por mostrar como Lula recebia e processava parte das informações que usava para governar.

Oscar Pilagallo - jornalista e autor de História da Imprensa Paulista e A Aventura do Dinheiro

Fonte: site Observatório da Imprensa
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