Pretendo passar o resto dos meus
dias na agitação do inferno que é São Paulo
A capital paulista se entranha em nossa alma com tal profundidade que
não imaginamos ser possível viver longe dela.
Minha cidade nasceu escondida
atrás da serra do Mar, muralha verde que a manteve
invisível aos que chegavam pelo litoral. Permaneceu assim por quase quatro
séculos: acanhada, provinciana, perdida num planalto de acesso difícil.
Então vieram o café e a
industrialização que atraíram imigrantes europeus, árabes e asiáticos, os
migrantes do interior e de outros estados, e a cidade cresceu sem parar,
transpôs as margens do Tietê e do Pinheiros, canalizou e
enterrou rios e riachos, abriu avenidas, demoliu casas, edifícios antigos e
tudo o que estivesse no caminho da sua ânsia de progresso.
A cidadezinha pacata, que em
1900 tinha 240 mil habitantes, deu origem à de hoje com mais de 11 milhões. Em
seu delírio de grandeza, encostou nas fronteiras da vizinhança para formar uma
megalópole com o dobro desse número.
Quando a comparo com a da minha
infância, é assustador: como foi possível São Paulo ter sobrevivido a
transformações tão radicais? O que levou séculos para ocorrer na Europa aqui
aconteceu em meio tempo de vida.
Você, leitor, dirá que a
desigualdade social aumentou, que o trânsito é enlouquecedor, que não tem hora
nem dia, fluxo nem contrafluxo, que nunca vimos tanta gente na miséria das
ruas, que boa parte da população vive em habitações precárias sem saneamento básico, que o medo de assaltos
nos persegue o tempo todo, que a maioria dos prédios que nos impedem de
enxergar as estrelas são excrescências arquitetônicas e que faltam parques,
árvores e espaços de lazer.
Tem toda
razão, não é fácil conviver com problemas dessa magnitude, muitos iriam embora
daqui se lhes fosse dada a oportunidade. Mas por que razão milhões que teriam
condições de ir para cidades mais bonitas, com dias mais tranquilos, teimam em
ficar? Por que tanta gente que se mudou para cá fala com nostalgia do lugar de
onde veio, mas não retorna às suas origens?
Quem nunca ouviu de um amigo na
volta das férias na cidade natal: "A primeira semana foi ótima, na segunda
já estava louco para vir embora". Qual a justificativa para gostar de uma
cidade tão agressiva como a nossa?
Acho que é porque São Paulo se
entranha em nossa alma com tal profundidade que não imaginamos ser possível
viver longe dela, mesmo que existam cidades muito mais amigáveis no interior e
no litoral.
Para cá afluiu gente de todos os
lados.
Em sua maioria eram pessoas que não se conformavam com as privações, a
falta de perspectivas e a impossibilidade de realizar seus sonhos, que se
dispuseram a abandonar parentes, amigos e mergulhar no desconhecido com a
esperança de construir vida mais digna e com mais oportunidades para si e para
os filhos.
Os acomodados não vieram com elas.
Nesse caldeirão de estrangeiros
e de migrantes germinou a cultura paulistana que privilegiou o trabalho de quem
faz força para progredir.
A quem se candidata a um emprego não se pergunta onde
nasceu. Aqui ninguém é considerado forasteiro nem será passado para trás por um
incompetente só por não ser paulistano.
Ao crescer e abrir espaço para
mentes criativas e irrequietas, São Paulo se tornou o maior centro financeiro,
cultural e científico do país.
O contato com gente
desse nível cria condições para a formação de artistas, cientistas e
intelectuais que se concentram nas universidades, nas manifestações culturais
que emergem na periferia, nos teatros, nas galerias e nas salas de espetáculos.
É um ambiente desafiador, no
qual convivo com pessoas que pensam, falam e se comportam segundo padrões
estranhos aos meus.
O anonimato da metrópole lhes dá acesso um grau de
liberdade para criar e inovar que não encontrariam em cidades menores, mais
acolhedoras, nas quais uns vigiam os outros.
Nasci e passei a infância numa
São Paulo com poucos carros, famílias com cadeiras na calçada e criançada
jogando bola em frente às fábricas.
Embora guarde boas lembranças, é provável
que eu cortasse os pulsos se fosse obrigado a viver na cidade daquele tempo.
Pretendo passar o resto dos meus
dias na agitação deste inferno. Como disse Itamar Assumpção: "É uma identificação
total, São Paulo sou eu".
DRAUZIO VARELLA - médico
cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.