É claro que importa quem é o
cientista
Não é a ciência ou o cientista que merecem confiança, mas o processo
científico.
Deixa eu começar dizendo que "o" cientista inclui
"a" cientista, como eu. Não vou perder mais linhas do que já perdi
apontando essa obviedade, consequência da falta de um artigo neutro na nossa
língua.
O Twitter, que eu só uso para
saber o que andam fazendo meus pares científicos, andou repassando furiosamente
um post do editor-chefe da revista Science, Holden Thorp.
O título do post, parafraseado aqui,
faz alusão ao que aparentemente "virou" controvérsia: reconhecer que
cientistas são pessoas e que, como tais, cometem erros e injustiças e são dadas
a vieses e preconceitos. Supostamente, tal reconhecimento enfraquece a
"crença na ciência".
Thorp conclui, e eu assino
embaixo, que não é a ciência ou o cientista que merecem confiança, e sim o
processo científico. A razão é que cientistas são, sim, pessoas, que
interpretam dados conforme suas crenças pessoais.
Não poderia ser diferente, e
a subjetividade da "ciência" é algo que nem inteligência artificial
resolve: todo dado é interpretado à luz do contexto ao seu redor.
Se o contexto
é enviesado, o resultado também será –vide chatbots usando o que aprenderam com
o conteúdo da internet para criar "declarações de amor" no mínimo
preocupantes ao seu interlocutor humano.
O que existe entre a realidade
do mundo e a subjetividade do cientista é o processo científico, este, sim,
isento.
Já comparei o fazer ciência
(está no meu canal no YouTube) a um jogo de
"sim" ou "não", no qual é preciso adivinhar um verbo,
objeto ou identidade de uma pessoa fazendo perguntas que admitem só uma dessas
duas respostas.
As observações que se fazem no caminho, objetos do
"sim" ou "não", são os fatos científicos: números, achados,
constatações.
Isso é o que pertence na seção de "resultados" de um
artigo científico, o formato oficial para a documentação do processo
científico.
É revelador do processo
científico, e da subjetividade da ciência, que o tal artigo científico é muito
mais do que apenas a seção que registra a sequência de "sins" e
"nãos" dos "resultados".
A sequência de perguntas importa,
assim como importa a razão de ser das perguntas. Para isso, serve a Introdução
do artigo, que expõe o tópico de interesse, apresenta a questão em particular e
coloca as perguntas específicas que serão feitas naquela iteração particular
d’O Jogo.
À Introdução segue-se o Método, que define a abordagem experimental,
ou as regras d’O Jogo: como as perguntas foram feitas e como os resultados
foram obtidos.
Aí vem a grande dificuldade para
o cientista: separar os Resultados da Interpretação dos Resultados, que deve
morar em sua própria seção, chamada Discussão.
A regra do processo científico é
que os Resultados são o que o cientista observou de fato, enquanto na Discussão
a pessoa autora discorre sobre o que ela ACHA que observou.
Convide dez cientistas a relatar
os mesmos achados e o resultado serão dez narrativas distintas do mesmo núcleo
de fatos. É claro que importa quem é o autor do relato, a começar por quais
perguntas lhe são interessantes e importantes.
Mas os fatos, ah, estes
permanecem: o Real é o que sobrevive às nossas opiniões.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA)