Sensação à esquerda na internet, compartilhado por Fernando Haddad e elogiado por Ciro Gomes, o engenheiro Eduardo Moreira tem viralizado com críticas à reforma da Previdência. Na última sexta-feira (12), publicou o documento 44 coisas que você precisa saber sobre a reforma da Previdência.
Eduardo – bem-sucedido no mercado financeiro, onde foi sócio do Banco Pactual – tem um canal popular no Youtube de educação financeira e um site em que oferece cursos como os 3 Pilares para a Construção da Riqueza Vitalícia, Investidor Mestre, e Programa Mente Rica. No ramo, escreveu também o livro Investir é para Todos – O Guia de Finanças do Encantador de Vidas.
Este inusitado background para um opositor da reforma o tornou um troféu para a esquerda (que chega a anunciá-lo como ex-banqueiro) e alvo de críticas dos liberais (que enxergam oportunismo na conduta).
Este colunista trocou alguns tweets com Eduardo, que gentilmente se ofereceu para um debate – ainda não ocorrido.
Enquanto isso, vamos aos comentários sobre as 44 coisas que você precisa saber sobre a reforma (também em vídeo). As 44 coisas são importantes porque são argumentos não apenas de Edu Moreira, mas de partidos e corporações oposicionistas.
No que concordamos
Aqui vale reproduzir trecho idêntico da última coluna, ainda do debate com Sâmia Bomfim.
A proposta para o BPC é ruim.
A elevação do tempo mínimo de contribuição de 15 para 20 anos é temerária, pois esse é o requisito mais difícil a ser alcançado pelos mais pobres – especialmente mulheres.
A capitalização gera preocupante perda de arrecadação. Ela é contradiz o discurso de déficit e eventuais ganhos serão pequenos e de longo prazo, face um problema fiscal urgentíssimo a ser resolvido.
Incluo outra concordância: a crítica às mudanças na previdência rural.
Os 44 equívocos
1) O déficit da Previdência seria um conceito inventado pelo governo. Não é. Não só não é criação do governo Bolsonaro (usado inclusive nos governos do PT), como não é um dado apenas do Poder Executivo.
Ele é aprovado anualmente há décadas pelo Congresso Nacional nas leis orçamentárias. Do ponto de vista tecnocrático, é referendado pelo TCU – que audita a contas.
2) Para Edu, a Constituição seria clara em relação a este conceito. Não é. A Constituição não detalha a contabilidade da Previdência. Neste ponto, como em outros pontos, Eduardo Moreira é caixa de ressonância do lobby do funcionalismo, que apresenta essa narrativa.
Qual narrativa? A de que o déficit da Previdência deve considerar as receitas do conjunto da Seguridade – definida pela Constituição. Mas Seguridade não é sinônimo de Previdência. Ela inclui a Saúde e a Assistência, que hoje já recebem a menor parte do bolo dessas receitas e não têm contribuições carimbadas como a Previdência.
Perceba que esse argumento vai exatamente ao encontro da narrativa a favor da reforma. Qual narrativa? A de que o crescimento do déficit consome recursos de outras áreas. Se afirmam que o déficit da Previdência pode crescer tranquilamente porque pode ser custeado pelas contribuições da Seguridade, estão afirmando precisamente que a Previdência deve consumir recursos da Saúde e da Assistência.
(O leitor pode se interessar pelas colunas: Por que o SUS pode acabar e Tudo que você queria saber sobre o déficit da Previdência, mas não tinha onde perguntar)
3) A DRU afetaria as contas da Previdência. Ela teria capturado receitas da ordem de R$ 115 bilhões em 2017. Só que a Desvinculação de Receitas da União (DRU) absolutamente não afeta as contribuições de empregados e empresas para o caixa do INSS (por força do art. 167, XI, da Constituição).
Como afirma a auditoria do TCU, o impacto da DRU sobre o resultado da previdência é nulo.
Edu poderia estar se referindo então ao impacto da DRU nas contribuições sociais (as do conjunto da Seguridade).
4) A Seguridade teria recebido menos por conta da DRU em 2017. Contudo, o déficit da Saúde+Assistência+Previdência em 2017 foi de R$ 292 bilhões. Ou seja, o déficit foi mais de 2 vezes maior do que os recursos desvinculados pela DRU.
A DRU é, portanto, um instrumento de gestão do orçamento ao longo do ano, mas o que sai da Seguridade volta em proporção muito maior (o déficit).
Nos termos do Relatório Final do Fórum criado pela ex-presidente Dilma Rousseff para discutir a reforma “Se não houvesse DRU, a seguridade social continuaria deficitária”.
(O leitor pode se interessar pelas colunas: Como a União quebrou os Estados com a DRU e ainda Tudo que você queria saber sobre o déficit da Previdência, mas não tinha onde perguntar)
5) A Seguridade Social teria sido superavitária por 25 anos. Aqui fica claro como Edu bebe na fonte dos servidores. Este lobby defende que a Seguridade passou a ser deficitária somente a partir de 2016.
Voltemos ao Relatório do Fórum de Dilma, que apresenta o déficit da Seguridade mesmo com a DRU:
Reprodução
Por que Edu Moreira fala em superávit e os próprios governos petistas falavam em déficit? Porque acolhe a conta da Anfip, uma associação de auditores da Receita – categoria de elite mais numerosa do Poder Executivo.
Segundo essa conta, deve-se excluir do orçamento da Seguridade Social o Plano de Seguridade Social dos Servidores. Como o regime dos servidores é amplamente deficitário, a exclusão da conta reduz muito a despesa sem reduzir tanto a receita do conjunto da Seguridade.
Faz sentido? Ainda que se coloque essa conta para fora, ela terá que ser paga de alguma forma, representando subtração de recursos em algum lugar. Daria na mesma, a não ser que os servidores não fossem pagos. Certamente não é o que a Anfip defende.
6) Receitas poderiam ter sido capitalizadas e criado fundo de R$ 1 trilhão para pagar benefícios hoje. Ora, ainda que se aceitasse que a Seguridade Social foi superavitária por 25 anos, teríamos 2 problemas com o argumento.
O primeiro é que isso não diz nada sobre como resolver a situação atual, afinal o dinheiro não existe – a velha história do leite derramado.
Mas o segundo problema, e mais importante, é que a previdência pública no Brasil não opera por capitalização! Como esses recursos poderiam ter sido investidos?
É justamente a criação de um regime com capitalização que a reforma atual propõe, frontalmente criticado pela oposição e pelo próprio documento de Eduardo Moreira. Tanto que, nesse ponto, preferem a expressão “preservação num fundo”. É capitalização!
7) Previdência urbana teria sido superavitária nos anos de economia forte. Mas o superávit do INSS urbano ocorreu apenas entre 2009 e 2015. Mesmo durante o período anterior de crescimento forte, ela continuou ostentando déficits. Mais relevante, a tendência é de resultados negativos, isto é, um vigoroso déficit atuarial sob diversos cenários – por conta do envelhecimento da população.
Aqui há um argumento bastante legítimo, o de que a previdência rural responde por boa parte do déficit. Mas esta despesa cresce em velocidade menor do que a previdência urbana, pela própria urbanização, e por isso é a urbana que deve ser foco da reforma da Previdência.
8) A grande maioria dos brasileiros teria sua aposentadoria rebaixada pela nova fórmula. Como a fórmula é de 60% da média salarial com o tempo mínimo de contribuição, acrescida de 2% por ano adicional a 20, só seria possível receber 100% com 40 anos. Assim, a maioria dos trabalhadores – apenados pelo desemprego e informalidade – teria rendimentos rebaixados.
Não procede. O governo mantém a vinculação das aposentadorias ao salário mínimo, o que torna para a maioria dos trabalhadores a reposição igual a 100% ou mais mesmo com o tempo mínimo de contribuição.
Como o salário mínimo cresceu muito acima da inflação nas últimas décadas, o salário médio dos trabalhadores mais pobres está muito abaixo do salário mínimo atual. Qualquer fórmula que incida sobre esta média é irrelevante, porque o mínimo atual é garantido.
Por exemplo, considere um trabalhador que desde 1995 sempre recebeu exatamente o salário mínimo, contribuindo para a Previdência sobre este salário até meados de 2018. 100% de sua média salarial seria igual a R$ 676, bem abaixo do salário mínimo de R$ 954.
Como o trabalhador contribuiu por 23 anos, aplicando-se a fórmula vigente atualmente (70% + 1% por ano de contribuição), ele receberia uma aposentadoria de R$ 628 (93% da média salarial, computada pelos 80% maiores salários).
Isso é abaixo do mínimo previdenciário de 1 salário mínimo. A fórmula é, portanto, ignorada e paga-se o salário mínimo (uma reposição de 140% em relação ao seu salário médio).
Na nova fórmula, seu benefício seria de R$ 446. De novo, o salário mínimo é garantido. E 70% dos benefícios na aposentadoria por idade urbana são de 1 salário mínimo.
Para este público, a preocupação é mesmo com o aumento do tempo mínimo de 15 para 20 anos – que Eduardo Moreira adequadamente questiona.
A nova fórmula – que tem o mérito de unificar uma meia dúzia de fórmulas do complexo sistema atual – de fato traria perda na aposentadoria por idade para àqueles menos pobres, com média salarial acima do salário mínimo atual. Mas isso está muito longe de representar a “grande maioria”, especialmente dentre os pobres.
9) A grande maioria dos brasileiros morreria antes de se aposentar. Se muitos brasileiros morrem antes de se aposentar, fazendo com que a expectativa de vida ao nascer seja menor do que a expectativa de vida dos aposentados, isso não significa que as regras de aposentadoria devam ser modificadas – ao contrário.
Explico: bebês que morrem de diarreia ou jovens assassinados de fato não se aposentam, e jogam para baixo a expectativa de vida. Deveríamos querer mais recursos para políticas que os beneficiem, não menos recursos (resultado da não aprovação da reforma).
Ainda que a afirmação de Edu tivesse um erro de digitação (sendo a interpretação que “a grande maioria morrerá”, e não “a grande maioria morre”), é preciso ressaltar que a idade mínima virtualmente não está subindo para os mais pobres, especialmente os que vivem menos (homens).
A idade mínima de 65 anos já é a idade mínima exigida na aposentadoria por idade urbana para homens (ex: pedreiro) e no BPC para homens e mulheres (ex: empregada doméstica). A idade do homem rural não muda.
Para os mais pobres, o que está mudando é a idade da aposentadoria por idade urbana da mulher (de 60 para 62) e da rural (de 55 para 60). Embora mereçam reflexão, certamente não implicam que milhões morrerão antes de se aposentar.
Aliás, o benefício dos mais pobres da Seguridade, o BPC – cuja mudança já critiquei – está tendo sua idade mínima reduzida em 5 anos (de 65 para 60).
Ainda que o valor seja menor, é um desafio óbvio à lógica do argumento dos pobres que morrerão antes de se aposentar.
Então a reforma não aumenta as idades de aposentadoria? Aumenta principalmente para os mais bem posicionados na distribuição de renda: os servidores e, no INSS, os que têm excesso de tempo de contribuição.
Perceba nas imagens abaixo: a reforma eleva a idade de aposentadoria de quem se aposenta cedo e vive muito (a aposentadoria por tempo de contribuição). E reduz a idade de aposentadoria de quem se aposenta tarde e vive pouco (o BPC).
(Sobre a confusão das idades, o leitor pode se interessar pelas colunas: Por que os catarinenses se aposentam 3 anos antes que os outros brasileiros? e O dia em que João Goulart quebrou a Previdência).
10) Inválidos vão ter benefício menor, pois recebem o BPC. Eduardo entende que o BPC é pago aos “que comprovam invalidez ou uma condição de miserabilidade”. Na realidade, é pago aos que comprovam a condição de miserabilidade E se encontram em alguma alguma das duas seguintes situações: i) idade avançada (mais que 65 anos); ii) deficiência.
Assim, o BPC não se confunde com a aposentadoria por invalidez, e não está se reduzindo a R$ 400. A aposentadoria por invalidez respeitará a fórmula de cálculo global e os anos de contribuição, e não pode ser abaixo de 1 salário mínimo.
De outra parte, para os informais, o BPC pode de fato substituir a aposentadoria por invalidez no caso de deficiência. Mas o valor do BPC da pessoa com deficiência segue em 1 salário mínimo. Não se aplica, portanto, a terrível lógica de Eduardo: “O corte deste benefício reduz esses anos de vida. Significa, (sic) antecipar a morte dessas pessoas”.
11) A reforma da Previdência seria racista, ao punir mais a população negra do que a branca com as novas regras. “Isso porque a maior parte da população negra trabalha na informalidade e não conseguirá comprovar os 20 anos completos de contribuição aos 65 anos de idade”.
De fato, a mudança de 15 para 20 anos preocupa nesse sentido, junto com uma das mudanças no BPC (o aumento de 5 anos na idade para recebimento do salário mínimo, com recebimento inferior aos 60).
Mas a reforma da Previdência vai exatamente ao sentido contrário quando foca na aposentadoria do homem branco: a aposentadoria por tempo de contribuição. É este o benefício mais afetado, recebido por aqueles com inserção mais confortável no mercado de trabalho e que hoje se aposentam em média aos 55 (53 no caso das mulheres). Em menos de 14 anos, todos terão de se aposentar aos 65 (62 no caso das mulheres).
São incipientes no Brasil estudos sobre raça e Previdência, e dados dos beneficiários por raça não são divulgados. Contudo, exercícios podem ser feitos a partir de pesquisas domiciliares, com base nos entrevistados que se classificam como aposentados.
O gráfico abaixo apresenta cálculos do pesquisador Luis Henrique Paiva, do Ipea, para a PNAD, do IBGE, de 2015. Em idades mais baixas, a proporção de “brancos” aposentados é bem maior que a da categoria “pretos” (difere da categoria “negros”, que inclui “pretos” e também “pardos”).
Os números passam a convergir, fechando o gap, após as idades mínimas exigidas para concessão da aposentadoria por idade (urbana ou rural).
Quem se aposenta cedo no Brasil são os brancos. Mudanças sensíveis na reforma que podem afetar mais a população negra de fato existem (como tratado no início do texto), mas não permitem afirmar que a reforma “pune mais a população negra do que a branca com as novas regras”.
Ademais, a reforma da Previdência – enquanto grande repactuação no financiamento e gasto do Estado – não impõe apenas perdas, mas evidentemente ganhos. Quem é prejudicado com a estagnação atual? Quem sofre mais com o desemprego? Quem, portanto, se beneficiará mais com a superação da crise e retomada do emprego? O leitor pode se interessar pela conclusão na coluna Pobres devem ser os mais prejudicados pela não reforma.
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A coluna já está longa demais: retomamos na próxima a discussão sobre os demais argumentos contrários à reforma repetidos por Eduardo Moreira. Até lá!"
Pedro Fernando Nery - doutor em economia e autor do livro "Reforma da Previdência - Por que o Brasil não pode esperar?".
Fonte: jornal Gazeta do Povo