Como falar sobre CPF ajuda a entender a magia da
matemática
Enxergamos
padrões que conferem certo lirismo à aleatoriedade do existir e nos levam a
jogar no bicho.
A fila crescia em progressão aritmética.
Atrás de
mim, uma senhorinha mal-humorada bufava de ansiedade para digitar sua senha de
quatro algarismos.
Quando enfim cheguei ao caixa e consegui fornecer meu dados
pessoais, fiz um comentário inocente. Despretensioso. Mais pensando alto do que
elaborando uma tese.
"Curioso, isso. O CPF de vocês também é assim?
Uma sequência de 7?" Pronto. Silêncio sepulcral. Pares de olhos me
encarando.
Antes, porém, que pudesse pedir perdão a Euclides e Pitágoras por ser uma triste figura de
humanas comentando matemática numa agência de banco lotada, um falatório
começou.
"Cê acredita que eu sempre pensei nisso?"
"O meu também tem um monte de setes!" "De onde vem esse
número?" "E quem foi o 000.000.000-01?" "Enfim alguém mais
idoso do que eu!", completou a senhorinha, já de ótimo humor.
Jamais imaginei que o Cadastro de Pessoa Física se
tornaria um tópico tão animado de conversação.
Pena é que, depois de certa
pesquisa, descobri sua absoluta falta de glamour cabalístico.
Dos 11 dígitos do
CPF, oito são aleatórios. O nono tem a ver com a região onde vivemos (no caso
do Rio, o famigerado 7) e o resto, bem, é gerado por algoritmo mesmo.
Burocraticamente falando, vivemos a falta de poesia
dos códigos de barra, dos preços que não param de subir e do excesso de casas
decimais à direita de nossas dívidas.
Ainda assim, enxergamos padrões que
conferem certo lirismo à aleatoriedade do existir. Do contrário, não nos
agarraríamos a números da sorte nem sonharíamos.
Filha de professora de matemática, sempre fantasiei
sobre a vida dos algarismos.
Ainda criança, achava o 2 popular e casadoiro,
pois formava pares.
Primos, 5 e 7 eram os mais blasés. Numa cambalhota, 6 e 9
trocavam de forma, feito X-Men algébricos.
Enquanto o 8, sedutor
em seu corpão de violão, nos ferrava com a tabuada mais difícil.
No entanto, foi ao ler "O Homem que Calculava" que
tive um estalo definitivo.
Graças a Malba Tahan e seu personagem Beremiz Samir,
o calculista persa que vivia aventuras engenhosas, descobri que matemática
também é narrativa —e que tudo pode ser exato e humano. Racional e mágico.
Naquelas páginas de números inúmeros, encontrei até
142.857, meu favorito.
Multiplicado por 2, 3, 4 até 9, ele gera várias
surpresinhas misteriosas. Então experimente aí, você que me lê e também gosta
de fazer conta.
Na próxima fila, a gente puxa assunto e debate os resultados.
BIA BRAUNE - jornalista e roteirista, é autora do livro
"Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.