Atualmente, com uma moeda inconversível e que ninguém quer
portar, com uma inflação de preços estimada em 194% ao ano, e
com rígidos controles de preços, toda a distribuição de alimentos na Venezuela
foi colocada sob supervisão militar.
Segundo a matéria de capa do Times, a venezuelana Mary Noriega, assistente de laboratório,
tem de ficar na fila junto a 1.500 outros venezuelanos para conseguir comprar
comida "enquanto soldados armados pedem as carteiras de identidade para se
certificarem de que ninguém está comprando itens básicos mais de uma vez na
mesma semana". A senhora Noriega está tendo de fazer escambo com
seus vizinhos para conseguir colocar comida na mesa.
Quando a moeda morre
Em um épico miniconto de Thomas Mann intitulado
"Disorder and Early Sorrow" (Desordem e Dor Precoce), no qual ele
descreve como era a vida na República de Weimar, na Alemanha, então sob uma das
maiores hiperinflações da história,
a dona de casa, Frau Cornelius, fazia algo similar ao que os venezuelanos fazem
hoje para colocar comida na mesa:
O chão está continuamente vacilando sob seus pés, e tudo parece
estar de cabeça para baixo. Ela só pensa na sua tarefa mais crucial do
dia: os ovos, eles têm de ser comprados hoje, e agora. Cada ovo está
custando seis mil marcos, e há uma quantia racionada que só pode ser adquirida
neste dia da semana na mercearia que fica a quinze minutos de sua casa.
Fazendo uma análise econômica dessa história de Mann, este artigo
mostra como uma intervenção governamental na economia imediatamente leva a
outras intervenções. Tendo gerado escassez no mercado com suas políticas
inflacionárias, as autoridades alemãs criaram novas regulações para tentar
corrigir a irracionalidade que eles próprios haviam criado. O roteiro é sempre
o mesmo, em todos os países: o governo cria intervenções que geram
consequências inesperadas, e decide então recorrer a intervenções ainda mais
violentas para "sanar" as consequências não previstas das
intervenções anteriores.
Não é difícil de entender por que os alemães de hoje são tão
avessos a qualquer tipo de política monetária que tenha semelhanças com uma
política hiperinflacionária. A revista britânica The Economist
disse jocosamente que os alemães sofrem de "fobia" em relação à
hiperinflação.
É claro. Quando um alemão se lembra de como a taxa de
câmbio do marco pulou de 4,2 marcos por dólar em 1914 para 4,2 trilhões
de marcos por dólar em novembro de 1923; quando ele se lembra de que, em meados
de 1922, um pão custava 428 milhões de marcos; e que, em novembro de 1923, um
ovo custava 500 bilhões de marcos, as memórias obviamente não podem ser
boas.
[Nota do IMB: a hiperinflação vivenciada pelo Brasil no período 1980-1994 foi atenuada pelo fato de que, além do
mecanismo da correção monetária (uma invenção brasileira), a classe média e a
classe alta tinham acesso ao sistema bancário e utilizavam suas aplicações
(como as aplicações no overnight) para se proteger da
hiperinflação. Essas duas coisas não existiam na Alemanha da década de
1920. Houve muita escassez e racionamento no Brasil, mas não houve uma
completa chacina da classe média, como houve na Alemanha].
No conto de Mann, com toda essa destruição monetária como pano
de fundo, as pessoas tiveram de aprender na marra a como lidar com isso.
Nenhuma família podia comprar mais de cinco ovos por
semana. Sendo assim, as pessoas de uma mesma família entravam nas
mercearias sozinhas, uma após a outra, utilizando nomes falsos. Desse
modo, elas conseguiam vinte ovos para a família Cornelius.
Em um assustador caso de vida imitando a arte que imitou a vida,
o povo venezuelano está hoje enfrentando os mesmos obstáculos para comprar detergente, óleo vegetal e farinha (todos estes itens sujeitos a um rígido racionamento do
governo). Segundo a reportagem do Times:
Todas as compras feitas pelos venezuelanos são computadas em um
sistema de dados para garantir que cada consumidor não tente comprar os mesmos
produtos racionados em um período menor do que sete dias.
Soldados patrulham as filas fora dos supermercados, policiais da
guarda bolivariana ficam dentro dos supermercados, e funcionários públicos conferem
as carteiras de identidade à procura de falsificações que poderiam ser
utilizadas para driblar o sistema de racionamento. Procuram também por
imigrantes com visto expirado. Um funcionário público da imigração grita
alertando que transgressores serão presos.
Em Caracas, o governo não será facilmente enganado. Embora
racionamento, escassez e longas filas já fossem uma rotina na Venezuela, a queda no preço do petróleo intensificou o processo. Segundo o Times:
O governo enviou tropas para patrulhar as enormes filas que se
estendem por várias quadras. Alguns estados proibiram as pessoas de
esperaram fora dos supermercados ao longo das madrugadas, e funcionários do
governo estão de prontidão perto das portas de entrada e saída, prontos para
prender qualquer um que tenta driblar o sistema de racionamento.
O sistema de saúde sofreu um profundo baque. O suprimento
de remédios está simplesmente acabando. Salas de cirurgia estão fechadas
há meses, não obstante centenas de pacientes estejam na fila de espera para
cirurgias. Em uma clínica privada, um cirurgião conseguiu manter a sala
de cirurgias funcionando porque conseguiu contrabandear dos EUA, sem que o
governo venezuelano soubesse, remédios essenciais.
Thomas Mann relatou quão rapidamente o dinheiro perdia valor na
República de Weimar:
Antes de os filhos chegarem, Frau Cornelius tem de pegar sua
cesta de compras, sua bicicleta e ir correndo à cidade para tentar trocar seu
dinheiro por qualquer quantidade de bens possível. Caso não faça isso, o
dinheiro que está em sua mão irá simplesmente perder todo o seu poder de compra
ao longo do dia, e não lhe permitirá adquirir nada no dia seguinte.
O The New York Times tem um fotógrafo em Caracas, e essa foto
vale por mil palavras:
"As coisas irão piorar bastante porque é o petróleo o que
mantém a Venezuela funcionando", disse Luis Castro, enfermeiro de 42 anos
de idade, enquanto esperava na fila de um supermercado com centenas de outros
venezuelanos. "Já estamos nos acostumando a enfrentar filas
diariamente", disse ele, "e quando você se acostuma com algo, se
contenta com qualquer migalha que lhe é oferecida".
Ao passo que a maioria das pessoas são arruinadas pela
hiperinflação, há algumas que fazem fortunas. Em seus slides, o Times
mostra um especulador com a mão lotada de dinheiro em Caracas vendendo, no
mercado negro, sabonete, manteiga e óleo de cozinha.
Em seu livro The Downfall of Money:Germany's Hyperinflation and the Destruction of the Middle Class,
Frederick Taylor escreve que "pessoas com renda média e sem nenhum
acesso a produtos agrícolas ou a moeda estrangeira foram forçadas a aprender a
caçar e a ficar em filas por comida — tanto porque sua renda frequentemente não
era o suficiente para comprar o que queriam em um determinado dia, como também
porque havia, à medida que a hiperinflação se intensificava, uma genuína
escassez de comida."
Já os agricultores simplesmente não queriam trocar seus
alimentos por inúteis pedaços de papel que não tinham nenhum valor.
"Naquilo que rapidamente estava regredindo para voltar a ser uma economia
baseada no escambo, os mais espertos, para não dizer desonestos, chegavam
rapidamente ao topo da cadeia darwiniana", escreveu Taylor.
"Nas áreas rurais, os médicos exigiam pagamento em comida dos fazendeiros
que os procuravam".
Os trabalhadores começaram a ser pagos diariamente, e os homens,
tão logo recebessem seus salários, iam correndo com suas mulheres comprar
qualquer coisa que conseguissem. Após comprar os itens essenciais, eles
corriam até um banco para comprar qualquer moeda forte que ainda restasse.
O número de bancos aumentou substantivamente para lidar com esse novo
negócio. Em 1921, 67 novos bancos foram abertos. Em 1922, mais 92. E mais
401 surgiram em 1923-24. O número de funcionários de banco quadruplicou
nesse período. O Deutsche Bank tinha 15 filiais em 1923. De anos depois, já
eram 242.
Não foi a pujança da atividade econômica que criou a necessidade
desses novos bancos. "Os bancos estavam sobrecarregados de ordens para
comprar e vender ações e moedas estrangeiras. E os cidadãos comuns, em
número cada vez maior, se tornavam especuladores da bolsa".
"O colapso da moeda e o colapso da moralidade se tornaram
idênticos", escreve Taylor. Não eram apenas as prostitutas que
vendiam seus corpos. "As recém-desprovidas filhas da classe média
educada (em alguns casos, filhos também), que agora estavam no mercado do sexo
pago, estavam inteiramente disponíveis a qualquer preço — preferivelmente em
troca de cigarros, metais preciosos ou moeda forte em vez de marcos de
papel."
Com a inflação tendo destruído toda a poupança da classe média,
as moças jovens simplesmente não tinham nenhum dote a ser oferecido a pretensos
futuros maridos. "Quando a moeda perde totalmente seu valor",
escreveu uma mulher, "ela destrói todo o sistema burguês baseado no
matrimônio, de modo que destrói também toda a ideia de se manter casta até o
casamento".
Taylor cita uma história relatada pelo escritor russo Ilya Ehrenburg
sobre uma noite que ele passou com alguns amigos em Berlim. Segundo Ilya,
eles terminaram a noite visitando uma família alemã em um "apartamento
burguês perfeitamente respeitável". Foi-lhes oferecido limonada com
um pouco de álcool e
Então as duas filhas que estavam na casa entraram na sala,
totalmente nuas, e começaram a dançar. A mãe olhava esperançosa para as
visitas estrangeiras: talvez suas filhas fossem do agrado das visitas, e talvez
as visitas pagassem bem — em dólares, obviamente. "E é isso o que
chamamos de vida", suspirou a mãe. "Na verdade, é pura e
simplesmente o fim do mundo".
Tendo conhecimento de algumas dessas histórias, e olhando a
corrupção moral a que foi submetida a Alemanha, não é de todo incompreensível
entender fenômenos como a ascensão de Hitler. E também não é
incompreensível por que os alemães de hoje não são muito tolerantes com seus
vizinhos europeus que defendem políticas inflacionárias.
Países como a Venezuela e, em menor grau, Rússia e Argentina,
estão em caminhos perigosos no que tange às suas moedas. Eles deveriam
ler um pouco da história da Alemanha.
Douglas French - consultor especializado em impostos, particularmente em
relação às transações empresariais e comerciais
Fonte: New York
Times, suplemento NYT do jornal Folha de São Paulo