LAMA PADMA SEMTEN
Antes
de se tornar um líder budista, Lama Padma Semten era Alfredo Aveline e, entre
1969 e 1994, foi professor de física na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Em seus estudos pessoais desse período, no entanto, debruçava-se sobre uma
física não exata, a física quântica. Trata-se da teoria que estuda as menores
partículas do universo e que é considerada “não intuitiva”, já que leva em
conta não só fórmulas, mas também a expressão material dessas fórmulas. Muito
complicado? Um exemplo: temos a sensação de viver sobre um planeta plano,
apesar de vivermos em um mundo de forma arredondada. A física quântica
considera em suas teorias essa percepção humana, mesmos sendo inexata e
variável.
Avelino
fazia relação entre esse tipo de raciocínio e o pensamento budista. E, enquanto
ministrava as aulas, mergulhava também nos estudos religiosos. Em 1986, fundou
o Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB), com sede em Viamão, no Rio
Grande do Sul, e centros de prática espalhados pelo país. Em 1993, tornou-se
discípulo do lama (título que significa líder) tibetano Chagdud Tulku Rinpoche.
Três anos depois, ele mesmo foi ordenado lama, sacerdote e professor.
Hoje,
lama Padma Samten viaja pelo Brasil para oferecer palestras, retiros, estudos e
práticas que associam os ensinamentos budistas e o treinamento da mente às
questões da vida cotidiana e aos estudos nas áreas de educação, psicologia,
economia, administração, ecologia e saúde. Já foi chamado por grandes empresas
brasileiras para palestrar diante de centenas de executivos. Nenhuma delas,
porém, autoriza a divulgação de seu nome.
Padma conversou com NEGÓCIOS sobre momentos de crise econômica e de recursos,
sobre sustentabilidade e como a prática da meditação e dos ensinamentos
budistas podem ajudar na resolução de conflitos cotidianos.
Quando é convidado por grandes empresas para oferecer palestras,
qual é sua impressão sobre os executivos brasileiros?
O
primeiro encontro que tive com empresários foi em Salvador, na Bahia, durante o
congresso de uma organização. Pensei que fosse encontrar gente fechada e focada
em dinheiro. Mas que nada. Em geral, eles tinham uma visão ampla. As perguntas
deles eram: “Como fazer essa visão funcionar dentro da empresa?”. Eles são
superinformados, inteligentes, interessantes e abertos. Mas, quando estão
dentro das organizações, têm dificuldade em levar essa abertura para lá. Isso é
recorrente.
Que visão exatamente eles querem levar para as empresas, mas não
conseguem?
A
visão dos ensinamentos budistas aplicadas à administração, que apresento nessas
palestras. Começo falando sobre a nossa relação com o mundo
externo. Geralmente, estamos prestando mais atenção ao aspecto grosseiro
da vida, isto é, ao corpo físico e aos fatos externos. Então, esses temas
passam a dominar nossa mente, nossas emoções e nossos projetos. Se estudar a
história dos cientistas, por exemplo, você encontra uma sucessão de diferentes
visões que aparecem e substituem as anteriores ao longo do tempo. Qual a razão
para cientistas brilhantes terem desenvolvidos visões que se relevam tão
frágeis? Muitos físicos estudam o mundo externo e chegam a conclusões que
parecem vir de uma observação direta da realidade, que seria o mundo grosseiro.
Mas os estudos dependem do mundo interno em que o próprio cientista está
trabalhando.
Isso é física quântica?
Sim.
Um exemplo corriqueiro: todos temos a sensação de que Sol se levanta a Leste e
se põe a Oeste. Mas todos sabemos que é a Terra que gira e proporciona essa
visão. E, mesmo sabendo disso, continuamos tendo a outra sensação. Isso mostra
que são muito penetrantes os efeitos das disposições internas sobre o que o que
chamamos de mundo objetivo. Todos os tomadores de decisão são afetados por essa
visão. Todos olham para o mundo externo e pensam que dali podem gerar boas
decisões. Mas eles estão sendo ingênuos. Não estão percebendo que tem um mundo
interno configurando a visão que eles têm sobre as coisas. Outro exemplo: na
semana seguinte à eclosão da crise financeira de 2008, todos estavam explicando
como ela aconteceu. Quando o cenário externo muda, conseguimos traçar todo o
passado. Instantes antes de ela acontecer, porém, estávamos tomando decisões de
vida. Um minuto antes de o Titanic bater em um iceberg, as pessoas estavam
tomando champanhe, as contas bancarias delas estavam ótimas. Então, estão
melhores as pessoas que se prepararem para a surpresa.
Mas como alguém poderia se preparar para um acidente, como no
caso do Titanic?
A
premissa de todo mundo que está dentro do Titanic é a de que está tudo bem.
Sim. E qual seria a outra opção?
A outra opção é retornar àquela região de silêncio e olhar.
LAMA PADMA SAMTEN
Literalmente?
Sim.
Meditação. Um grande mestre japonês dizia: apenas sente. Quando a pessoa
senta, todo o conjunto de referenciais e visões começa a acalmar. De repente,
começa a ver as coisas de outro modo. Muda a perspectiva. Simplesmente por
causa do silêncio. Nossa mente funciona por excitação. Se você não coloca
elementos novos, naturalmente ela vai acalmando. Se sentarmos em silêncio, nós
progressivamente ganhamos liberdade interna diante desses pressupostos.
Conseguimos olhar de forma mais livre para as nossas realidades. Experimente
acordar às duas da manha, sentar na cama e olhar em volta. Pergunte-se: “Como
cheguei a esse lugar? O que estou fazendo aqui? Por que tem essa pessoa ao meu
lado há tantos anos? Que vida é essa que construí?”. A pessoa presa no trânsito,
indo para o trabalho, não consegue ter esse distanciamento. Precisamos sentar
com a sensação de que não vamos fazer nada. Não é como fazer uma reunião de
diretoria. É sentar aparentemente sem nenhum propósito.
Como transformar isso em uma atitude de trabalho, para tomar
decisões de negócios?
O
campo das organizações é parecido com o dos cientistas. Se eu estiver fechado
nas minhas ideias, não consigo ir adiante na ciência, não tenho ideias novas.
Quem estiver aferrado nas suas visões, ainda mais dentro de um ambiente
supervolátil, vai ter problemas. Até porque agora temos um iceberg na nossa
frente. É melhor entendermos isso.
Qual é o iceberg que temos na frente?
É um
pouco a situação de São Paulo. Nós estamos com falta d’água, mas está tudo
funcionando, não está? Há alguns meses, encontrei alguns gestores que trabalham
nessa área e perguntei: quanto de água entra em relação ao quanto precisamos?
Porque é uma questão de fluxo. Não se trata de quanto de água eu tenho ainda.
Trata-se de quanto está entrando no sistema em relação ao quanto está saindo.
Ele disse que entra 17% do que estamos consumindo. Esse dado é superimportante.
No caso de uma empresa, não olhe para o seu balanço de pagamentos e pense que,
porque ele está no azul, está tudo indo bem. Esse não é o ponto central. Há
organizações deficitárias durante um longo tempo, que depois se tornam
lucrativas, porque vão perseguindo uma visão vitoriosa. Mas elas levam tempo
para se estabelecer. Do mesmo modo, pode parecer que a organização está indo
bem, mas talvez já não esteja. Talvez ela já esteja saindo da perspectiva de
lucidez.
O que significa “sair da perspectiva de lucidez”? Que outros
indicadores deveriam ser levados em conta, na sua opinião?
Por
exemplo, todas as organizações que trabalham produzindo coisas que não são
úteis para as pessoas, que são contra a saúde, estão em um nível de perigo.
Hoje estamos operando com códigos distorcidos. Não vemos os rios, vemos os
“recursos hídricos”. É uma visão utilitária sobre as coisas. Não vemos pessoas.
Vemos recursos humanos. Mas essa visão está se esgotando, porque, querendo ou
não, são rios, mares, pessoas. Essa noção utilitária gera uma noção de lixo, de
rejeito. No setor do petróleo, hoje estamos descobrindo muitas reservas de
óleos combustíveis, mas temos um problema tão grande na atmosfera, que o óleo
não vai poder ser queimado. A pergunta é: como vamos evitar que o óleo seja
queimado? De novo, vou usar São Paulo como exemplo. Se faltar água, a cidade
vai parar – ou vai ter seu movimento bastante reduzido. Da mesma forma, se
tivermos uma crise logística, o preço dos imóveis vai baixar e as pessoas que
financiaram, de repente, estarão pagando algo que não vale mais. Então,
deixarão de pagar. Com isso, os bancos quebram e o desemprego se amplia. Estamos
cego diante dessas possibilidades. Mas, de repente, aquilo se choca e os
problemas acontecem. Temos que olhar antes, nos posicionar antes.
As empresas hoje parecem muito mais atentas às questões de
sustentabilidade, a políticas de prevenção de crises. Essas não seriam maneiras
de se posicionar antes?
Não é
suficiente. Em geral, as pessoas vão investindo e especulando até o último
momento. Quando aconteceu o colapso de 2008, os mais de cem bancos americanos
que quebraram, como os grandes Lehman Brothers e Goldman Sachs, tiveram que ser
socorridos com o dinheiro público para poder retornar. No meio da crise,
algumas pessoas especularam e ganharam fortunas. Tem que ter cuidado porque as
próprias organizações podem ser canibalizadas pelos lucros de gestores. Houve
gestores com salários aumentados, que ganharam bonificações nesses períodos,
enquanto a população pagava a conta. Os tempos que estamos vivendo não são para
uma administração que não tenha moralidade.
Seguindo seu raciocínio, o que vai significar, na prática, bater
no iceberg?
Uma
crise, mas vai haver também uma maior distribuição de renda, inevitavelmente.
Será uma mudança política. Porque o problema não é causado apenas pelas
empresas. É um sistema complexo. Hoje, os governos estão associados às organizações
privadas. Eles viraram agentes das grandes corporações. Na política americana,
tanto faz ser partido democrático ou republicado, porque ambos representam as
grandes organizações. Nós pensamos que isso é democracia, mas não é. Quando
vemos governos de primeiro mundo, como de países europeus, sem acolher os
jovens desempregados do próprio país, isso significa que o bico do Titanic
começou a bater.
Qual seria a atitude mais sábia nesse momento?
Nas
minhas palestras em empresas, eu falo das cinco sabedorias budistas.
São elas:
1. A
capacidade das gerências irem até as pessoas. Quando isso acontece, a tendência
é que todos sintam que estão no lugar certo.
2. A
sabedoria da igualdade, de ficar contente também com as conquistas alheias.
Isso traz a sobrevivência do próprio gestor. Porque até podemos operar ligados
a um planejamento, metas e resultados, mas com o tempo vamos entristecer e ter
vontade de fazer outra coisa. Porque isso não alimenta nosso mundo interno.
Precisamos nos alegrar não somente com o nosso mundo particular, mas também com
o de cada um da equipe. Assim, começa-se a viver uma vida espiritual.
3.
Tudo é passageiro. É importante entender nossa própria vida de forma ampla, a
partir do conceito da impermanência. Mesmo que façamos muitos esforços para
chegar a um lugar, há um tempo em que cansamos daquilo.
4.
Evitar ações negativas, que causam problemas aos outros. Essa sabedoria é
crucial. Isso vale tanto internamente, e aí os departamentos de RH devem ajudar
a evitar essas ações negativas, quanto externamente. Há organizações vendendo
produtos que vão gerar problemas de saúde depois. Qual é o futuro da produção
de alimentos contaminados? Em um tempo muito curto, esse tipo de solução vai
afetar a imagem das empresas. É evidente que deve ser evitado.
5. A
última sabedoria é a de que mesmo que tudo afunde, temos uma dimensão secreta
de onde sempre podemos reconstruir tudo. Assim como a cidade de Hamburgo, na
Alemanha, foi dizimada na segunda guerra mundial e se levantou do chão, todos
nós temos essa capacidade de recriação. E isso é fundamental em tempos como os
de agora, em que será preciso reconstruir tudo.
Fonte: epocanegocios.globo.com