A tal normalidade é um conceito enganoso:
não existe uma pessoa que seja média em tudo.
Dizem
que o cérebro humano é o sistema mais complexo do universo, aquele cuja
definição requer a maior quantidade de informações. Parte dessa complexidade a
que cabe em combinações variadas de uns 10 a 20 mil genes, não mais é definida
geneticamente; outra parte, enorme e impossível de se quantificar, é definida
ao longo da vida, ao sabor da construção autorregulada do cérebro e do seu
próprio uso
Em
termos biológicos, é espantoso que mais coisas não deem errado mais vezes. É
tão maravilhoso que um sistema tão complexo funcione tão bem na maioria dos
casos, e na maior parte do tempo, que seguimos alheios à multiplicidade de
bombas por explodir em nossos corpos, acreditando na normalidade da vida.
A
tal normalidade é um conceito enganoso. Em português comum, ser
"normal" significa ser saudável, perfeito. Matematicamente, contudo,
"normal" é apenas aquele que cai no centro da distribuição
estatística de um parâmetro. E dada a complexidade do cérebro, dificilmente
alguém matematicamente normal é também perfeitamente saudável. Duvida?
Vejamos.
De acordo com as estatísticas dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, ao
menos 30% dos adultos sofrem, sofreram ou vão sofrer de um transtorno de
ansiedade em algum momento da vida; mais de 20%, de depressão, mania ou
bipolaridade; quase 20%, de enxaquecas.
Dos
idosos com mais de 65 anos, 13% tem doença de Alzheimer, e dentre aqueles com
mais de 85 anos, 45%.
Cerca
de 9% dos adolescentes sofrem de algum grau de distúrbio de déficit de atenção,
cerca de 9% das crianças e adultos tem algum distúrbio de personalidade
(borderline, evitante ou antissocial).
Cerca
de 4% das pessoas sofrem ao menos um ataque epiléptico ao longo da vida, e 3%
sofre ao menos um AVC.
Dos
jovens adultos, 2% tem transtorno obsessivo-compulsivo; cerca de 1% da
população tem algum grau de autismo (ou síndrome de Asperger); outro 1% sofre
de esquizofrenia. E um número enorme ainda escolhe destruir o próprio cérebro
com drogas variadas.
Assim
como a pessoa "média" não existe aquela com exatamente a altura
média, o peso médio, a distância entre os olhos, a frequência cardíaca média da
população, a chance de alguém ser normal a vida toda, sem qualquer transtorno
neurológico, é ínfima. De perto, ninguém é normal.
Nem
deveria ser: porque normal, afinal, é não ser normal. Ainda bem que a medicina
está aí para isso.
Suzana Herculano-Houzel - neurocientista, professora da
UFRJ, autora do livro "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor"
(ed. Sextante)