Quando
o assunto é futebol, a cobrança para que o Brasil renda bons resultados no gramado,
especialmente durante uma Copa do Mundo, se
estende ao campo da literatura. É comum escutar da boca dos críticos ou de
meros provocadores que a maestria brasileira com a bola não se repete com os
livros sobre o universo futebolístico. A discussão soa ingênua – afinal por que
é que a literatura deve dar conta, sistematicamente,
dos ‘talentos’ de um país –, mas o fato é que, há algum tempo e cada vez mais,
jogamos bonito também nos livros.
Desde
que o futebol se enraizou em seu solo, há obras literárias brasileiras muito
relevantes sobre esse esporte. Historicamente, os títulos que maior relevância
e fama alcançaram são os de não ficção, mas não faltam boas referências em
narrativas. Se falamos de crônica, gênero que costuma sofrer certo preconceito,
a riqueza é ainda maior. A relação entre futebol e literatura perpassa, com
diferentes olhares e níveis de envolvimento, a obra de renomados autores
brasileiros como Mário de Andrade, Alcântara Machado, Carlos Drummond de
Andrade, João Cabral de Melo Neto, Luís Fernando Veríssimo, João Ubaldo
Ribeiro, Ignácio de Loyola Brandão e Sérgio Sant’Anna. No entanto, encontra
seu ápice na crônica do dramaturgo Nelson Rodrigues, um autêntico carioca que
nasceu fora do Rio de Janeiro, e de seu
irmão, o jornalista e escritor Mário Filho.
Nelson
é o nome mais influente na tradição da crônica de futebol no Brasil, enquanto
Mário (que inventou o gênero no país) é autor de “O negro no futebol
brasileiro” – um verdadeiro clássico que explica a origem do futebol-arte no
Brasil, tocando temas imprescindíveis como o racismo no país, e que foi reeditado
às vésperas do torneio em inglês para ser distribuído aos jornalistas
internacionais. Ambos enxergavam no futebol uma manifestação cultural e
sociológica da nação, muito além de um mero jogo. “O pior cego é o que só vê a
bola”, dizia Nelson Rodrigues, famoso por sua acentuada miopia.
Com
as ondas levantadas por um Mundial, é claro que a curiosidade futebolística se
acentua. E autores e editores aproveitam para oferecer ao mercado novas
histórias e análises sobre jogos, jogadores, times e campeonatos, com suas
dores e delícias. Se de século XXI se fala, há os livros de Sérgio Rodrigues,
Michel Laub, André Sant’Anna e Marcelo Backes, com romances; e José Miguel
Wisnik, Ruy Castro e Airton de Farias, com seus relatos e ensaios de
interpretação. Na seara do conto, nomes bacanas como Rogério Pereira, Ronaldo
Correia de Britto, Fernando Bonassi, Cristóvão Teeza, Eliane Brum, Adriana Lisboa e Carola Saavedra
fazem parte de uma antologia de textos inéditos organizada por Luiz Ruffato.
A
partida dos escritores
O
melhor da inserção do futebol na literatura reside nas histórias que dão conta
das contradições brasileiras ao redor da bola. O jogo sempre suscitou no país
dicotomias de amor e ódio, pobreza e elitismo, racismo e mescla social – e por
aí vai. Nada mais atual que essas e outras discussões, calorosas já de antes e,
também agora, durante a Copa.
Para
o jornalista e escritor carioca Sérgio Rodrigues, autor de O Drible,
romance em que o talento de craques do passado se opõe ao mercantilismo do jogo
de hoje, “o futebol é uma narrativa pronta, tem o drama na própria história do
jogo e do jogador”. Essa rica matéria de que é feito o esporte pode costurar as
mais complexas tradições, mas também intimidar autores que se assustam com
tanta autossuficiência. Seu livro foi bastante elogiado e já traduzido ao
espanhol, ao francês e ao dinamarquês.
O
poeta, contista e romancista paulistano Ferréz, ligado à produção literária da
periferia de São Paulo, diz que odeia
futebol, mas escreve sobre o tema em seu blog e nas redes sociais. São textos
breves e poéticos, “motivados pela raiva que sinto por essa Copa”, em que ele
nega a tradição de “país do futebol”: “Isso foi plantado. Ninguém está
preocupado, está todo mundo pagando conta”, afirma.
Segundo
ele, a boa literatura brasileira sobre futebol reside no trabalho de escritores
periféricos, que “não têm esse ufanismo e não falam do jogador ou do clube e
sim dos sentimentos das pessoas” – personagens que gostam de futebol, mas que
vivem a realidade e não a ‘farsa’ do país do futebol. São autores como Michel
Yakini, Cidinha da Silva e Marcos Telles.
Realmente,
esse é um assunto tem tudo para extrapolar a página. Tanto para Ferréz, como
para Rodrigues, o Brasil não deveria ter se candidatado a sediar o Mundial.
“Essa relação entre futebol, política, eleição, poder eFIFA não nos traz nada.
O que vai acontecer é que o país vai parar vários dias e deixar de andar pra
frente. E a presidenta diz que o povo vai ficar com os estádios... Só faltava
os estrangeiros levarem os estádios com eles”, alfineta o primeiro.
Rodrigues
é mais brando, mesmo tendo críticas: “Uma vez que entrou, o país tem que fazer
a Copa da melhor maneira. Mas o clima anda pesado pelo show de incompetência
que demos para sediar o evento. As pessoas estão ressabiadas, e o orgulho
nacional de ser um país de vencedores no futebol ficou obscurecido pelos
problemas. Podemos até ganhar, mas permanece essa imagem negativa”, opina.
O
jornalista e escritor carioca Ruy Castro, autor de uma biografia do Garrincha e
do recém-lançado “Os garotos do Brasil – Um passeio pela alma dos craques”, é
um apaixonado por futebol que, no entanto, faz coro a esse “complexo de
vira-lata” – expressão cunhada no passado por Nelson Rodrigues para designar
certo sentimento de inferioridade do brasileiro, em oposição à sua fama
positiva no futebol. “Nunca o Brasil encarnou tanto o complexo de vira-lata
quanto atualmente. E, de certa maneira, nunca [o país] nos deu tantos motivos
para isso”, disse.
Futebol
e literatura: uma seleção
Quando
é dia de futebol, de Carlos Drummond de Andrade (Companhia das Letras)
O
negro no futebol brasileiro, de Mario Filho (Mauad)
A
pátria de chuteiras, de Nelson Rodrigues (Nova Fronteira)
Veneno
remédio – O futebol e o Brasil, José Miguel Wisnik
(Companhia das Letras)
O
drible, de Sérgio Rodrigues (Companhia das Letras)
Segundo
tempo, de Michel Laub (Companhia das Letras)
O
paraíso é bem bacana, de André Sant’Anna (Companhia das Letras)
O
último minuto, de Marcelo Backes (Companhia das Letras)
Entre
as quatro linhas – Contos sobre futebol, de Luiz Ruffato (Dsop)
Os
garotos do Brasil – Viagem à identidade secreta dos nossos craques, de
Ruy Castro (Foz)
Uma
história das Copas do Mundo – Futebol e sociedade, de
Airton de Farias (Armazém da Cultura)
Camila Moraes - jornalista do El País
Fonte: site Observatório da Imprensa