Portugal precisa do Brasil para ser português?
País
precisa acreditar que exerce influência sobre o Brasil, e que tem seu respeito.
Não há nenhum outro caso semelhante na História.
Depois de ter sido o artífice da independência de uma ex-colônia, D. Pedro volta à metrópole para assumir a
coroa do colonizador acrescentando ao título régio a expressão "defensor
perpétuo do Brasil."
Nos últimos 200 anos, celebrados nesta quarta-feira (7), a
relação entre os dois países independentes foi-se modelando, ao longo do tempo,
de acordo com oscilantes interesses nacionais, circunstâncias inesperadas,
visões ideológicas cíclicas e afeições pessoais entre alguns líderes.
Nada que seja incomum nas relações internacionais
entre Estados.
Mas, no caso do Brasil e Portugal, há um elemento imaterial
que torna a relação incomparável e complexa: a consciência autoinduzida, por
parte de Portugal, do seu excepcionalismo.
Como ensinaram os republicanos brasileiros, as
identidades coletivas podem ser moldadas.
E, ao longo de centenas de anos, a
identidade portuguesa foi forjada em torno da ideia de que a vulnerabilidade do
país (pobreza, pequenez territorial e isolamento geográfico) pode ser superada
pela heroicidade do seu povo.
A função messiânica do país, como nação
pluricontinental, miscegenadora e multirracial, é um elemento estruturante da
sua identidade. Camões, António Vieira, Pessoa, Freyre
celebraram-na sem meios-tons.
Tal como a celebram todos os governantes
portugueses contemporâneos, de todos os matizes partidários, que enfatizam, em
discursos públicos, o impulso português para o universalismo.
São também
recorrentes as obras públicas contemporâneas com nomes de navegantes que deram
"novos mundos ao mundo".
A partir de 1974, com o fim do império colonial e o
enxugamento territorial do país, Portugal apropriou-se da ideia de lusofonia
para continuar a irradiar a sua influência pelo mundo.
Criou a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa),
com sede em Lisboa e atualmente com nove países membros, incluindo o Brasil.
Portugal também é um país europeu e europeísta, mas
na Europa voa sem sair do lugar; a sua
influência é diretamente proporcional à sua vulnerabilidade.
É apenas no campo
da lusofonia que Portugal tem conseguido consumar a sua identidade universal.
O
que significa que Portugal, para ser português, precisa acreditar que exerce
algum tipo de influência sobre o Brasil, e que tem o seu respeito.
Mas isso não acontece. O Brasil é um país
superlativo que nunca reconheceu em Portugal uma prioridade longeva.
E sempre
que o Brasil mostra mais frieza, Portugal contorce-se, retorce-se,
desconforta-se e azia-se enquanto sob o tom para falar "nos laços de
amizade que unem dois povos irmãos."
Bolsonaro, Temer e Dilma mostraram muita
indiferença por Portugal. As passagens pelo país foram poucas e fugidias.
Como
reagiu o atual presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa? Fazendo seis
visitas ao Brasil em seis anos, um recorde que viola códigos diplomáticos de
reciprocidade.
Marcelo, como é carinhosamente tratado pelos
portugueses, nasceu no berço do universalismo português.
Na década de 1960, o
seu pai, Baltazar Rebelo de Sousa, foi nomeado governador-geral de Moçambique.
Após a revolução dos Cravos, refugiou-se no Brasil.
O avô de Marcelo, António Joaquim, viveu em Angola,
depois de também ter trabalhado no Rio de Janeiro.
Para o presidente português,
as capitais da lusofonia, de Díli a Luanda ou a Maputo, não são capítulos da
história portuguesa, mas páginas no álbum de família.
O Brasil é um assunto de
Estado, mas também é uma memória pessoal.
Estas semanas consensualizou-se em Portugal a ideia
de que a presença do presidente nas celebrações dos 200 anos da independência do Brasil é uma
inevitabilidade histórica.
As relações são entre Estados e não governantes e o
Brasil não se pode esgotar na pessoa de Bolsonaro, um líder consensualmente
desdenhado pelos portugueses.
Mas seria a presença de Marcelo inevitável?
O rei de Espanha participou dos 200 anos da
independência da Colômbia (em 2010), do Chile (em 2010), da Argentina (em 2016)
ou da Venezuela (em 2010-2011)? Não.
São inúmeros os exemplos em que chefes de estado de
países com tradição colonial não participam deste tipo de cerimônias.
A presença de Marcelo no Brasil é um gesto retórico
de um presidente que é particularmente sensível à importância de manter o
Brasil dentro da esfera de influência.
A sua sexta visita ao Brasil é mais
importante para os portugueses do que para os brasileiros.
Mas está a relação entre Brasil e Portugal
condenada a ser um rendilhado de insígnias, um permanente pretérito perfeito,
um discurso panegírico?
À coluna, o ex-chanceler Celso Lafer (1992,
2001-2002) salienta que os dois países sempre conseguiram encontrar
"convergências úteis", em torno de temas pontuais, principalmente
quando há afinidade pessoal entre líderes luso-brasileiros.
FHC nutria muito apreço pelo premiê António
Guterres e pelo presidente Jorge Sampaio, o que facilitou a intervenção de
Portugal, na União Europeia, para que o Brasil não fosse prejudicado pelo surto
da doença das "vacas loucas" em 2001-2002.
A boa relação entre Lula e o premiê José Sócrates
ou entre os chanceleres Celso Amorim e Luis Amado e Celso Lafer e Jaime Gama são
outros exemplos.
Mas o Brasil é pragmático e transacional. É condescendente com
a retórica universalista portuguesa apenas quando vê a possibilidade de extrair
dividendos específicos.
E o futuro? Uma eventual vitória de Lula abrirá um
campo de novas oportunidades. Se cumprido o programa eleitoral, a sua política
externa será vigorosa.
Enquanto Alckmin arrumará a casa interna a partir do
Jaburu, Lula tentará arrumar o mundo a partir do Planalto.
Em declarações à coluna, o ex-ministro das relações
exteriores de Portugal Luis Amado (2006-2011) reforçou que estamos atravessando
uma "reconfiguração geopolítica de larga escala".
Enquanto o norte global obedece a uma lógica
binária que opõe países democráticos a estados autocráticos, o sul global tem
uma visão mais utilitarista e menos principiológica das relações
internacionais.
Quando a expulsão da Rússia do Conselho de Direitos
Humanos da ONU foi a votos, em abril, 82 países do sul puxaram o freio,
incluindo a Indonésia, Índia, México e China.
Estes países têm mostrado uma posição neutral
no conflito Ucrânia-Rússia. Estimativas de bancos e
consultorias europeias indicam que, em 2030, 7 das 10 maiores economias do
mundo serão do sul global, incluindo as duas primeiras (China e Índia).
As
declarações públicas de Lula estão alinhadas com este novo
contexto, facilitando a sua ascensão como líder do sul global. Hoje o trono
está vazio.
Há aqui uma oportunidade para Portugal forjar com o
Brasil de Lula uma aliança de futuro, servindo como um dos países do norte
global que é capaz de construir pontes com o sul.
Se atualmente os dois hemisférios são o contraponto
um do outro e estão envoltos por um manto de animosidade, Portugal e o Brasil
podem serem interlocutores estratégicos numa missão que extravasa a relação
bilateral.
Dando a Portugal acesso a novos espaços de
influência no sul, o Brasil ajudaria, agora com outros contornos, os
portugueses a envigorarem a sua idealização universalista e a perceberem que o
ideário da lusofonia também tem limitações.
A língua portuguesa é um poderoso instrumento de
unificação entre países, mas também é uma divisa que aparta povos. Portugal e o
Brasil podem ser maiores do que o seu idioma comum.
RODRIGO
TAVARES - fundador
e presidente do Granito Group; professor catedrático convidado na NOVA School
of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum
Econômico Mundial, em 2017