Como Clarice Lispector, não
consegui curar minha mãe
Sinto até hoje
essa culpa: fizeram-me para uma missão e eu falhei.
No Dia das Mães de 2021, acordei e decidi
fazer algo que nunca havia feito antes: escrever uma carta para a menininha
triste que nunca deixei de ser. E só parei 12 horas depois.
Agora, preparando o relatório final do meu
pós-doutorado em psicologia social com a minha pesquisa sobre envelhecimento,
autonomia e felicidade, estou relendo tudo o que escrevi desde o início de
2021.
E chorei muito quando reli a carta que escrevi para a menininha triste
que mora dentro de mim. Afinal, nunca deixamos de ser a criança que um dia nós
fomos.
Segue
um pequeno trecho da minha cartinha.
"Olá,
muito prazer em te conhecer. Muito prazer mesmo, porque eu realmente quero te
conhecer. Sabe por quê? Porque eu preciso cuidar de você.
Desculpe-me
a demora. Você já estava me esperando há muito tempo, não é mesmo?
Escondidinha, apavorada, dentro de um armário escuro, sem ninguém para cuidar
de você.
Como
você conseguiu sobreviver tanto tempo dentro desse armário escuro, sujo,
fedorento, cheio de lixo, poeira, ratos, traças, cupins, baratas e vermes?
Você
precisa urgentemente sair agora para respirar, brincar e sentir o calor do sol.
Sei
que você gostaria que eu entrasse aí dentro para ficar escondidinha e
grudadinha em você, como você era com sua mãe. Mas se eu entrar, também não vou
conseguir respirar.
Chega
de ser invisível, chega de se proteger, chega de invejar as meninas felizes que
estão brincando à luz do sol, chega de parar de existir para não morrer. Você
deve estar exausta de sentir tanto medo, dor e sofrimento. Basta!
Quantas
noites você ficou sem dormir com pavor dos gritos, das surras e das brigas?
Quantas vezes você ficou invisível para não ser espancada, sufocada e
destruída? Quantas vezes você pensou que a morte seria a sua única saída?
Por
que você continua se torturando, escondida dentro da caverna escura, se tudo o
que você precisa saber para se curar já está dentro de você?
Por que você ainda
se sente à mercê da violência dos seus algozes se eles já morreram há muito
tempo?
Por que você não consegue dormir com pânico de ser maltratada,
machucada, sufocada, magoada, roubada, desprezada, desvalorizada, ignorada,
rejeitada, abandonada, destruída e morta?
Por que você continua mendigando
migalhas de amor, aprovação e reconhecimento dos seus carcereiros? Por que você
continua grudada na vida infeliz e miserável da sua mãe?
Por que você ainda
sente culpa por não ter conseguido salvar sua mãe daquele inferno?
Como
uma menininha triste, frágil, magrinha e traumatizada poderia salvar a mãe da
violência física, verbal e psicológica? Infelizmente, ninguém tinha o poder de
salvar ou curar sua mãe.
Quando
você vai conseguir enxergar que conseguiu sobreviver fazendo aquilo que mais
ama, apesar do seu pai gritar todos os dias: "Você é uma bosta! Você é uma
merda!"?
Quando, apesar das feridas não cicatrizadas, você vai reconhecer
que, por meio da leitura e da escrita, aprendeu a transformar a sua tristeza em
beleza, a sua dor em amor e o seu medo em coragem?
E que não precisa mais
provar para o seu pai que não é uma bosta? E que não precisa mais se sentir
culpada por não ter conseguido salvar a sua mãe?
Sei que você não teve filhos porque continua a
mesma menininha triste grudada na dor e na miséria da sua mãe.
Sei que você
acha que não tem capacidade para amar, proteger e cuidar de uma criança.
Sei
que você chora porque não conseguiu salvar e cuidar da sua mãe."
Em "A Descoberta do Mundo", Clarice Lispector escreveu:
"Fui preparada para ser dada à luz de um modo
tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante
espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença.
Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha
mãe. E sinto até hoje essa culpa: fizeram-me para uma missão e eu falhei".
Minha doce menininha, até quando você vai carregar
o peso da culpa de não ter conseguido curar a pessoa que você mais amou em toda
a sua vida?
Quando você vai se libertar da dor dilacerante por ter falhado na
missão de salvar sua mãe daquele inferno?
MIRIAN GOLDENBERG | antropóloga e professora da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"