Se houver um tratamento, com que autoridade e em que
circunstâncias deve se 'consertar' o cérebro alheio?
Como
já escrevi aqui em duas ocasiões, cerca de 1% da população, dependendo dos
critérios usados, nasce com um cérebro "diferente", que causa
sofrimento nos outros e não se importa com isso, ainda que seja capaz de sofrer
com as próprias dores, de sentir medo, angústia e prazer.
Esses são os sociopatas, pessoas cujo desvio da normalidade
causa muito mais problemas para a sociedade do que para si mesmas. O próprio
sociopata, enquanto não for preso ou punido de outra forma, leva vantagem: sem
o empecilho da emoção alheia para lhe servir de freio, seu cérebro tem a
liberdade de tomar as decisões que mais o beneficiarem. Sociopatas manipulam
família, colegas de trabalho, "amigos", mentem, roubam e, às vezes
(mas nem sempre) matam, desimpedidos pela falta de remorso --pois não sentem a
dor do outro.
A neurociência vem há algum tempo mapeando as diferenças no
cérebro dos sociopatas, deficiências de funcionamento que abrangem várias
estruturas envolvidas no reconhecimento das emoções alheias, como a amígdala
(do cérebro, não a da garganta) e a ínsula; na avaliação do estado mental
alheio, como o córtex temporal superior; e na tomada de decisões baseada no
resultado das próprias experiências, como o estriado ventral e o córtex
órbito-frontal. Com tantas estruturas comprometidas, a sociopatia é considerada
um distúrbio um tanto amplo do desenvolvimento do cérebro, impossível de tratar.
Para o neurocientista James Blair, especialista em sociopatia do
National Institutes of Health dos EUA, contudo, todo o conjunto de anomalias
poderia ser explicado por apenas duas disfunções: no estriado ventral, causando
comportamento impulsivo e más decisões; e na amígdala, que, hiporreativa às
emoções alheias, levaria ao comportamento frio, impassível ao sofrimento
alheio.
A importância do modelo de Blair é a janela que ele abre para
possibilidades de tratamento. Em animais de laboratório, é possível causar
experimentalmente uma baixa reatividade da amígdala com a depleção de
serotonina e dopamina no cérebro, e revertê-la com a normalização dos níveis
desses moduladores. Por isso, é ao menos teoricamente possível que medicamentos
possam reverter a insensibilidade da amígdala de sociopatas.
Se funcionar, teremos pela primeira vez um tratamento para a
sociopatia --e um novo problema em mãos: com que autoridade e em que
circunstâncias deve se "consertar" o cérebro alheio?
Suzana Herculano-Houzel - neurocientista,
professora da UFRJ e apresentadora do programa Cerebrando (cerebrando.net)
Fonte: www.suzanaherculanohouzel.com