"Ficar condenado à família é
o fracasso da função familiar; tê-la como ponto de apoio é o estado da
arte"
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Na atual lista de culpas dos pais, disputando lugar no
topo, está a atenção com a lição de casa e o cotidiano escolar das crianças.
Assunto importantíssimo, a vida escolar do pimpolho surge fora de tom hoje em
dia. Mães e pais, chegando do trabalho exaustos, se prestam a um último esforço
de acompanhar/fazer a lição de casa da criança, esforço sem o qual o pequeno
chegará à escola de mãos abanando no dia seguinte. As desavenças com colegas e
professores são acompanhadas por famílias aflitas com os conflitos que podem
surgir do contato entre os alunos (recomendo a premiada série "Big Little
Lies", HBO, 2017, com exemplos primorosos da obsessão dos pais pela vida
social dos filhos, deslocada para a escola).
Vale refletir sobre quem é quem nesta história. A
família, seja qual for sua configuração (uma avó, dois pais, duas mães, papai e
mamãe...), deve oferecer as ferramentas para que o filhote humano se vire no
mundo. Se estamos no Brasil, cabe a aquisição do português, comer com talheres,
obsessão com a limpeza corporal. No Japão, falar japonês, comer com hashi, ir
às casas de banho, falar baixo...
Também caberá à família, queira ou não, transmitir sua
história, suas neuroses, seus fantasmas e segredos, ou seja, o mais humano em
nós. Mas tudo isso só faz sentido se tiver como lema o seguinte: mundão, aqui
vamos nós! Ficar condenado à família é o fracasso retumbante da função
familiar. Tê-la como ponto de referência e apoio é o estado da arte.
Com esse objetivo principal em mente, a entrada na
escola é um passo fundamental para que a criança experimente o mundo ainda de forma
protegida e em petit comité (a ideia de escola, como a conhecemos hoje,
pauta-se na ideia de infância, que por sua vez, surge a partir do séc. 16, com
a mudança de mentalidades, e visa proteger a criança do mundo adulto). Tendo
escolhido a escola para o filho, quando se tem o privilégio de ter uma escola à
disposição e de poder escolhê-la, cabe à família permitir que o pimpolho
usufrua de sua função, qual seja, haver-se com outros fora de casa, relativizar
os costumes, interrogar a própria família, assumir as diferenças, aprender a
tolerar.
Faz parte dessa aprendizagem chegar sem a lição de casa
e encarar o professor para que ele ajude a criança nas eventuais dificuldades
com o conteúdo ou nas dificuldades em bancar responsabilidades.
Dito isso, a participação dos pais na escola é
fundamental em pelo menos dois aspectos. Primeiro, no sentido de bancar à
criança a importância da escola, ainda que ela se queixe de sua rotina, de seus
colegas e de suas obrigações. Ela se queixará, no mínimo, pelo fato inédito e
saudável de ter que dividir a atenção com mais 30 pimpolhos sem a
condescendência dos pais.
Segundo, as famílias precisam participar ativamente da
instituição escolar como cidadãos, defendendo-a incessantemente do seu
sucateamento, da ameaça a sua laicidade e do desrespeito ao seu centro nervoso,
leia-se, ao professor. Se os pais participarem da proteção da escola enquanto
instituição, em vez de buscarem proteger seus filhos dentro dela, estarão dando
a lição que falta a nossa sociedade e cuja ausência nos corrói enquanto país:
ensinando o exercício da cidadania.
Vera Iaconelli - psicanalista, fala sobre relações entre pais e
filhos, as mudanças de costumes e as novas famílias do século 21.
Fonte: coluna jornal FSP