Ricas
espezinham as pobres para não perder a doméstica de estimação
Comemoro o fato de não ter nascido na Antiguidade
romana. Casaria aos 10 anos para garantir ao marido que era virgem. Se tivesse
sobrevivido aos partos, e depois de ter conseguido o mínimo de três filhos
reconhecidos pelo pai, viraria matrona. Isso significa que a partir dos 20 anos
de idade praticaria a abstinência sexual. Se fosse escrava ou concubina,
serviria à vida sexual dos maridos das matronas e lidaria com as gestações
indesejadas e os abortos decorrentes.
Deus me livre ter nascido em plena Idade Média, período
em que se discutia obsessivamente se a Virgem Maria teria parido sem perder a
virgindade. Enquanto os religiosos debatiam a vagina imaculada, mulheres não
tão benditas eram torturadas pela Inquisição para confessar pactos com o
demônio. Seria considerada bruxa se me atrevesse a proferir outros credos,
conhecimentos, interesses sexuais ou divergências políticas. Iria para a
fogueira diante de minhas filhas para lhes servir de lição.
Fico aliviada de não ser renascentista. Teria que
casar com algum nobre desconhecido imberbe ou velho demais, para preservar os
laços da realeza. Seria abandonada, cercada de filhos, por um marido
interessado em passar décadas no mar atrás de fortuna no Novo Mundo.
Mulher segura flor durante protesto contra violência
doméstica em frente ao Ministério do Interior da Romênia, em Bucareste
Poderia ser a índia que ele encontraria ao chegar no que
se chamou de Brasil, ser estuprada e morta. Também poderia ter sido presa,
enquanto cozinhava para minha família, sendo transportada para um mundo
inteiramente irreconhecível e vendida, sem nunca entender o porquê, como uma
coisa para trabalhar, apanhar e servir sexualmente.
Tampouco posso reclamar de não ter nascido na Era
Vitoriana. Teria um casamento por conveniência, no qual o sexo seria uma
obrigação e os filhos, a única aspiração reconhecida. O espartilho oprimiria
meus miolos e a minha leitura seria censurada. Caso me rebelasse, seria
considerada histérica e internada por toda a vida em situação tão degradante,
que talvez preferisse seguir em um casamento de abusos e frustrações. Talvez fosse
musa de algum artista famoso, sem que pudesse eu mesma ser reconhecida como
artista ou fugir de suas investidas sexuais. Prostituição seria a saída, caso
não estivesse casada. Poderia ter sido uma operária com rotina de escrava. Não
teria podido votar até que algumas
mulheres morressem em nome dessa causa.
Aliviada de ser mulher em 2018?
Não temos direito sobre nossos próprios corpos e fazemos
abortos sob risco físico, jurídico, psíquico e moral. Ganhamos menos do que
homens que trabalham tanto quanto nós, para depois cuidarmos dos filhos e da
casa de ambos sem “ajuda”. Não podemos sair à noite sozinhas sem correr
sérios riscos.
Podemos ser molestadas no transporte público ou ser
atacadas na rua, sendo culpabilizadas por isso nas delegacias que deveriam nos
proteger. Nossas denúncias são desprezadas como “mimimi”. Mulheres de classe
alta espezinham as mais pobres, com medo de perder a “doméstica de estimação”.
Tememos o aumento da violência sem reconhecer que ela é o efeito de nossa
violência imposta aos outros, que retorna contra todos nós, principalmente,
contra as mulheres.
Todas as situações descritas acima, desde a Antiguidade,
têm seus exemplos hoje, em todo mundo.
Ao ver conhecidos, amigos, vizinhos, familiares e, principalmente, mulheres
escolhendo um candidato que
declara sua visão grotesca e inaceitável do que é uma mulher, testemunho, mais
uma vez, quanto o nosso tempo tarda a chegar.
Vera Iaconelli - diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar
na Maternidade”. É doutora em psicologia pela USP.
Fonte: coluna jornal FSP