Luto na quarentena


O trabalho do luto não deve ser negligenciado.

Enquanto vivemos nossas vidas corridas, ocupados com trabalho, filhos, amores e afazeres, não nos lembramos muito de Moraes Moreira, Aldir Blanc, Sérgio Sant'anna, Alfredo Garcia-Roza, Little Richard, Flávio Migliaccio. Mas eis que eles se vão e nossos dias ficam repletos de chorare, equilibristas, detetives, contos primorosos, rock'n'roll, Shazan & cia.

A perda resgata os sujeitos que pairavam distantes do nosso dia a dia. Quando se dá a falta, eles se presentificam mais do que nunca, e suas lembranças vívidas absorvem nossa energia.

Se forem entes próximos, então, a falta apaga o entorno por completo e somos tragados para um mundo paralelo, túnel do tempo de afetos, sensações e imagens. Diante da perda, deixamos de lado o trabalho e tudo o que soava imprescindível desaparece. A rotina, que não podia parar, simplesmente para.

Ficamos assim, enquanto o luto faz seu trabalho --como chamou Freud em "Luto e Melancolia". Trabalho psíquico que requer tempo, reconhecimento social, rituais, elaboração das ambivalências.

Como fazer os rituais fúnebres durante a quarentena é a pergunta que não quer calar diante da aterradora marca de 11 mil mortes —e contando.

As despedidas se tornaram virtuais e, embora se realizem por meio do cúmulo da tecnologia, têm se revelado surpreendentemente íntimas e acolhedoras.

Pode-se fazer uma reunião em uma plataforma virtual com convidados, nas quais são feitas pequenas homenagens. Convida-se amigos para compartilhar falas, músicas, imagens que celebram a existência de quem partiu, brinda-se. A parte operacional pode ser facilitada por uma pessoa contratada para esse fim, ou não, pois é simples. O encontro também poderá ficar gravado.

A quarentena é oportuna para se repensar a atual forma como lidamos com as perdas. Os sepultamentos se tornaram situações puramente burocráticas, oferecendo pouca chance de trocas simbólicas significativas.

A medicalização do luto —e dos afetos em geral— tem sido um dos grandes problemas da nossa época, desencadeando inúmeras formas de sofrimento, que são expressões dos lutos não realizados. Como um corte que não teve tempo e condições de cicatrizar, o luto fica em aberto causando dor interminável. Negação, melancolia, raiva, somatizações, é longa a lista das expressões do luto patológico. O que não enfrentamos à vista, pagamos em adoecimento a prazo. Haja vista os descalabros que ouvimos da secretária da Cultura, ilustrando sua impossibilidade de elaborar minimamente os lutos históricos que ainda nos martirizam.​

Realizado esse longo processo de despedidas, o amor —e o ódio— que investimos no outro volta para nós, nos obrigando a transformar esses afetos em algo que faça jus à vida de quem se foi.

Lauren Collins compartilha sua experiência com a virtualidade e a morte do pai em "Reinventing Grief in An Era of Enforced Isolation", artigo publicado na revista The New Yorker (4/5). Nosso precioso Antonio Prata também nos brindou com sua homenagem ao padrasto Nirlando Beirão em sua coluna (10/5).

Em ambos os textos, vemos o trabalho psíquico de dar um novo destino ao amor que perde seu objeto. Acabamos nós, leitores, agraciados pelas lindas palavras dirigidas a quem não tivemos o privilégio de conhecer. Assim nossos mortos cumprem, através do trabalho de luto de quem fica, sua derradeira função de deixar para o mundo o amor que produziram a sua volta.

Vera Iaconelli - diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

 

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