A
mesma droga que no corpo de uma moça saudável facilita o estupro pode tirar uma
pessoa doente da cama
Uma mesma substância, disponível em hospitais e clínicas
veterinárias, e também ilicitamente nas ruas, é capaz de causar analgesia,
anestesia, prazer, delírios... ou aliviar, em menos de uma hora e por mais de
uma semana, um episódio de depressão grave, daqueles em que a pessoa não
consegue gerar motivação para se mover, muito menos sair da cama.
A substância é a cetamina, e o que exatamente acontece
quando se recebe a droga depende da dose aplicada e do estado atual do usuário.
A parte curiosa, à primeira vista, é que todos os efeitos envolvem a mesma ação
farmacológica: o bloqueio de uma molécula na superfície dos neurônios,
fundamental para sua ativação.
Como o efeito imediato da cetamina é uma queda na
ativação dos neurônios, a redução da dor e a eventual perda da consciência são
consequências inevitáveis se a dose for alta. Mas alguns dos neurônios afetados
pela cetamina atuam sobre outro tipo de neurônio, estes inibidores, que agem
como freios no cérebro.
A cetamina pode ter efeito sobre a depressão –
Se esses neurônios inibidores estiverem hiperativos,
como na depressão, pequenas doses de cetamina, ainda não suficientes para
causar perda de memória ou anestesia, já podem ser suficientes para impedir
esses freios e facilitar a ação (assim como multiplicar dois números negativos
dá um resultado positivo).
Em um elegante estudo recente, cientistas na China
mostraram que a cetamina age contra a depressão profunda como um freio do freio
do sistema de prazer e recompensa do cérebro. O freio é a habênula, região do
cérebro que livros de neuroanatomia sequer mencionam, mas onde surtos de
atividade provocam apatia. A cetamina, ao interromper esses surtos, restaura o
prazer e a motivação.
A
mesma droga que no corpo de uma moça saudável facilita o estupro pode tirar uma
pessoa doente da cama. É um belo exemplo de como nossa biologia é simples e
complicada ao mesmo tempo —e não há respostas fáceis aos problemas da vida.
Suzana
Herculano-Houzel - bióloga formada e
neurocientista.
Fonte:www.suzanaherculano.com.br