Saúde
Suplementar: Setor cresce mas uso de serviços cai em 2025
O setor de saúde suplementar brasileiro apresenta um cenário
paradoxal no primeiro trimestre de 2025: enquanto o número de beneficiários
continua crescendo, especialmente nos planos odontológicos, a utilização
efetiva dos serviços de saúde registra quedas significativas em praticamente
todos os grupos de procedimentos.
Os dados, divulgados pela Agência Nacional de
Saúde Suplementar (ANS) na edição de junho do Panorama da Saúde Suplementar,
revelam transformações profundas no comportamento assistencial e nos padrões de
consumo de serviços médicos no país, com implicações diretas para a
sustentabilidade econômica do setor e para a qualidade da assistência prestada
aos mais de 87 milhões de brasileiros cobertos por planos privados.
Em
abril de 2025, o Brasil contabilizava 52,3 milhões de vínculos a planos
médico-hospitalares, representando um crescimento de 1,94% em relação ao mesmo
período de 2024.
Os planos exclusivamente odontológicos, por sua vez,
apresentaram desempenho ainda mais robusto, com 34,8 milhões de beneficiários e
expansão de 5,91% no período.
Esses números consolidam o setor como um dos
pilares do sistema de saúde brasileiro, atendendo aproximadamente 40% da
população e movimentando cifras bilionárias que impactam diretamente a economia
nacional.
A Expansão dos
Planos Odontológicos e a Estagnação Relativa dos Planos Médicos
A análise da
evolução decenal do setor, entre abril de 2015 e abril de 2025, revela uma
dinâmica de crescimento assimétrica entre as modalidades assistenciais.
Enquanto os planos médico-hospitalares registraram um crescimento modesto de
4,4% no período — saindo de 50,1 milhões para 52,3 milhões de beneficiários —,
os planos odontológicos experimentaram uma expansão explosiva de 71,4%,
saltando de 20,3 milhões para 34,8 milhões de vínculos.
Essa disparidade
reflete não apenas a maior acessibilidade econômica dos planos odontológicos,
cujas mensalidades são significativamente mais baixas, mas também uma mudança
cultural na percepção da saúde bucal como componente essencial do bem-estar.
A
democratização do acesso a tratamentos preventivos e estéticos, aliada à
ampliação da oferta por parte de operadoras especializadas e de pequeno porte,
contribuiu para esse fenômeno.
O crescimento dos
planos médico-hospitalares, por outro lado, concentra-se quase exclusivamente
nos planos coletivos empresariais, que registraram expansão de 3,90% entre 2023
e 2024.
Em contraste, os planos individuais e os coletivos por adesão apresentaram
retração: -1,38% e -4,87%, respectivamente. Essa tendência evidencia a
crescente dificuldade de acesso à cobertura privada de saúde para trabalhadores
autônomos, profissionais liberais e aposentados, que dependem de contratações
individuais ou por entidades de classe.
O Paradoxo da
Subutilização: Mais Beneficiários, Menos Atendimentos
O dado mais
intrigante do relatório da ANS diz respeito à frequência de utilização dos
serviços de saúde.
No primeiro trimestre de 2025, todos os grupos de
procedimentos médico-hospitalares registraram quedas na relação eventos por
beneficiário, quando comparados ao mesmo período do ano anterior.
Mais
surpreendente ainda é a constatação de que, mesmo seis anos após o início da
pandemia de Covid-19, a utilização de diversos serviços permanece abaixo dos
níveis observados em 2019, ano tomado como referência por representar o padrão
pré-pandêmico.
Consultas médicas,
internações, terapias e procedimentos odontológicos apresentaram índices de
utilização inferiores aos de 2019. Apenas dois grupos mantiveram-se acima do
patamar pré-pandemia: exames e outros atendimentos ambulatoriais.
O primeiro
grupo, que inclui exames laboratoriais e de imagem, consolidou-se como o
principal componente da produção assistencial, representando 69,1% do total de
procedimentos realizados no primeiro trimestre de 2025, ante 62,9% em 2019.
Esse fenômeno pode ser interpretado sob múltiplas perspectivas.
De um lado, reflete a crescente incorporação tecnológica e a valorização da
medicina diagnóstica, com protocolos clínicos cada vez mais dependentes de
exames complementares.
De outro, pode indicar uma mudança no padrão de acesso
aos serviços, com maior resolubilidade em níveis de atenção menos complexos e
maior eficiência na triagem de casos que efetivamente necessitam de
intervenções mais invasivas.
A
queda na utilização de consultas médicas, no entanto, é preocupante.
Com um
índice de 0,83 no primeiro trimestre de 2025 (base 1,00 em 2019), a redução de
17% na frequência de consultas por beneficiário pode sinalizar barreiras de
acesso, seja por dificuldades na marcação de consultas, seja por mudanças
comportamentais dos usuários, que podem estar postergando atendimentos ou
recorrendo a alternativas como telemedicina não contabilizada nos sistemas
tradicionais.
Cenário
Econômico-Financeiro: Receitas Bilionárias e Desafios de Sustentabilidade
O setor de saúde
suplementar movimentou, em 2024, R$ 312,1 bilhões em receitas de
contraprestações (mensalidades pagas pelos beneficiários ou seus empregadores)
e R$ 256,8 bilhões em despesas assistenciais (gastos com consultas, exames,
internações e demais procedimentos).
Esses números colocam o setor como um dos
mais relevantes da economia brasileira, comparável em magnitude a setores
industriais tradicionais.
A relação entre
receitas e despesas assistenciais — conhecida como índice de sinistralidade — é
um dos principais indicadores de sustentabilidade do setor.
Em 2024, esse
índice situou-se em torno de 82%, o que significa que, para cada R$ 100
arrecadados em mensalidades, as operadoras gastaram R$ 82 com assistência à
saúde.
Embora esse patamar seja considerado saudável do ponto de vista
atuarial, ele deixa pouca margem para absorver choques de demanda ou aumentos
abruptos nos custos assistenciais, especialmente em um contexto de incorporação
acelerada de novas tecnologias médicas e medicamentos de alto custo.
A análise das
despesas médias por tipo de evento assistencial revela pressões inflacionárias
específicas.
Procedimentos de alta complexidade, como cirurgias oncológicas e
transplantes, apresentam aumentos de custos muito superiores à inflação geral
da economia, refletindo a sofisticação tecnológica e a especialização crescente
da medicina contemporânea.
Por outro lado, procedimentos de menor complexidade,
como consultas médicas básicas, têm seus valores pressionados para baixo pela
concorrência e pela busca de eficiência operacional por parte das operadoras.
Ressarcimento ao
SUS: Um Mecanismo em Evolução
Um dos aspectos
mais sensíveis da relação entre os sistemas público e privado de saúde é o
ressarcimento ao SUS.
Quando um beneficiário de plano privado utiliza serviços
do Sistema Único de Saúde, a operadora deve ressarcir os cofres públicos pelos
custos incorridos.
Em 2024, foram cobrados R$ 956,7 milhões em ressarcimentos,
dos quais R$ 769,42 milhões foram efetivamente repassados ao Fundo Nacional de
Saúde (FNS).
A taxa de
utilização do SUS por beneficiários de planos privados tem se mantido
relativamente estável nos últimos anos, oscilando entre 1,5% e 2,4% dos
atendimentos totais.
Em 2024, essa taxa situou-se em 1,73%, indicando que,
embora a grande maioria dos beneficiários utilize exclusivamente a rede
privada, uma parcela não desprezível recorre ao sistema público, seja por
indisponibilidade de serviços na rede credenciada, seja por questões de
urgência ou preferência por centros de referência públicos em determinadas
especialidades.
Uma inovação
normativa importante foi a instituição do “Programa Agora Tem Especialistas”,
que permite que o ressarcimento ao SUS seja convertido em prestação de serviços
no âmbito do sistema público, mediante celebração de termo de compromisso.
Essa
medida pode representar uma alternativa mais eficiente do que o mero repasse
financeiro, ampliando a oferta de consultas e procedimentos especializados para
a população SUS e reduzindo filas de espera em áreas críticas.
Defesa do
Consumidor: A Taxa de Intermediação Resolvida
A ANS tem
investido em mecanismos de mediação de conflitos entre beneficiários e
operadoras, buscando resolver demandas de forma ágil e eficiente, sem a
necessidade de processos administrativos ou judiciais prolongados.
A Taxa de
Intermediação Resolvida (TIR) mede o percentual de reclamações que foram
solucionadas por meio da Notificação de Intermediação Preliminar (NIP), um
instrumento de mediação que busca o acordo entre as partes.
Em 2024, a TIR
alcançou 77%, e nos primeiros quatro meses de 2025, aproximou-se de 80%. Esses
índices indicam que a grande maioria das demandas dos consumidores é resolvida
de forma consensual, sem a necessidade de instauração de processos
sancionadores contra as operadoras.
Esse resultado é positivo tanto para os
beneficiários, que obtêm respostas mais rápidas, quanto para as operadoras, que
evitam sanções administrativas e preservam sua reputação.
O Painel de
Contratantes: Transparência e Conhecimento do Mercado
Uma das novidades
destacadas no Panorama é o lançamento do Painel de Contratantes de Planos de
Saúde Coletivos, uma ferramenta que apresenta o perfil das empresas e entidades
que contratam planos coletivos para seus empregados ou associados.
Esse painel é
particularmente relevante porque os planos coletivos representam mais de 80% do
total de beneficiários do setor, sendo 70% em planos coletivos empresariais e
10% em planos coletivos por adesão.
O painel permite
identificar a atividade econômica dos contratantes, possibilitando análises
setoriais sobre a oferta de benefícios de saúde.
Setores com maior formalização
do trabalho e maior capacidade de negociação coletiva tendem a oferecer planos
mais abrangentes e com melhores condições contratuais. Por outro lado, setores
com alta rotatividade de mão de obra ou predominância de pequenas empresas
apresentam menor cobertura, evidenciando desigualdades no acesso à saúde
suplementar.
Essa transparência
é fundamental para orientar políticas públicas de incentivo à ampliação da
cobertura, bem como para subsidiar negociações coletivas entre sindicatos e
empregadores.
Além disso, permite às operadoras e consultorias atuariais uma
compreensão mais precisa dos perfis de risco associados a diferentes segmentos
econômicos, aprimorando a precificação e a gestão de carteiras.
Desafios e
Perspectivas para o Setor
O setor de saúde
suplementar brasileiro enfrenta desafios complexos e multifacetados.
A
transição demográfica, com o envelhecimento acelerado da população, pressiona
os custos assistenciais, uma vez que idosos consomem mais serviços de saúde e
apresentam maior prevalência de doenças crônicas.
A incorporação tecnológica,
embora traga benefícios inegáveis em termos de diagnóstico e tratamento, eleva
os custos de forma exponencial, exigindo constante reavaliação dos modelos de
cobertura e precificação.
A regulação do
setor pela ANS busca equilibrar a proteção dos direitos dos consumidores com a
sustentabilidade econômica das operadoras.
Normas que ampliam coberturas
obrigatórias ou restringem reajustes de mensalidades são bem-vindas do ponto de
vista social, mas podem comprometer a viabilidade financeira de operadoras
menores ou com carteiras de risco desequilibradas.
Por fim, a
integração entre os sistemas público e privado permanece como um desafio
estratégico.
Mecanismos como o ressarcimento ao SUS e o Programa Agora Tem
Especialistas são passos importantes, mas ainda insuficientes para construir
uma verdadeira complementaridade entre os dois sistemas.
A saúde suplementar
não pode ser vista como um privilégio de poucos, mas como um componente de um
sistema de saúde universal, equitativo e sustentável.
O Panorama da
Saúde Suplementar de junho de 2025 oferece um retrato detalhado e multifacetado
do setor, revelando avanços, contradições e desafios.
Compreender essas
dinâmicas é essencial para gestores, reguladores, profissionais de saúde e,
sobretudo, para os milhões de brasileiros que dependem desses serviços para
cuidar de sua saúde e de suas famílias.
ANDREA
MENTE - Atuária,
CEO Assistants Consultoria Atuarial