'Ela é louca de internar': por que a internação não
pode mais ser um tabu
Hoje estou a
léguas de distância dessa intervenção, mas já precisei e sei que é uma
realidade para muitos doentes mentais.
"Ela é louca de pedra, louca de
internar." Bastou eu ouvir essa frase para quase engasgar com o café que
tomava ao lado da mesa daqueles senhores.
Parei de prestar atenção em qualquer
outra coisa e meu foco foi todo para aquela conversa. Entendi que estavam
falando da filha de um terceiro. Que evidentemente não estava lá.
A conversa
continuou, mas eu me detive naquela frase tão leviana.
Eu me sinto com a obrigação de normalizar esse
assunto. Minha vontade era levantar e ir tirar satisfação dos caras e entender
o que eles estavam querendo insinuar. Internar seria o fim da linha?
Nessas
horas, lembro da minha irmã: "Ai, Alice, esquece, relaxa". Mas não
consigo deixar barato quando o assunto é internações psiquiátricas.
É como se
eu estivesse cuidando de mim lá no passado e tentasse ajudar para que
internações desse tipo fossem menos sofridas do que elas já são.
Nunca quis chegar ao ponto que cheguei. Ser separada de
todas as coisas e pessoas que faziam minha vida ter sentido foi muito ruim.
Mas
foi necessário. As minhas internações salvaram minha vida, me desintoxicaram
e preveniram uma catástrofe. Eu estava me
matando a olhos vistos e caso eu morresse, penso, provavelmente esconderiam das
pessoas a causa da morte.
Hoje estou a léguas de distância de uma internação,
mas sei que é uma realidade para muitos doentes mentais e fico com pena que
ainda seja um tabu falar do assunto.
Lembro de ficar preocupada com o que as
pessoas pensariam de mim e do quanto aquilo queimaria o meu filme no nível
profissional e pessoal.
Eu tentei me matar, coloquei minha vida em risco
muitas vezes e mesmo assim precisava de uma maquiagem para falar do meu
sofrimento.
Não bastasse toda a dor de ter que ficar isolada de tudo que eu
amava, ainda teria que achar uma justificativa plausível para o meu sumiço total.
Na semana passada, uma pessoa do meu trabalho teve
que ser internada e eu acompanhei tudo de perto.
É difícil passar por isso,
entender exatamente o que está acontecendo e sobretudo encontrar pessoas de
confiança que possam acolher sem julgar.
A filha me pediu sigilo absoluto. A
Fátima é bipolar e abusa do álcool. "É uma doença", eu falei. Mas no
momento em que se decide internar uma pessoa, não dá para racionalizar direito.
Só há muito sofrimento.
Bipolar, borderline, depressão não deveriam definir uma
pessoa, mas sei que ainda é o que acontece. Fulana?
É depressiva. Ciclano é
louco de internar. Assim como a filha do amigo dos caras que estavam ao meu
lado no café. Eu queria sentar com eles e tentar explicar que o que eles
estavam falando era de uma estupidez sem tamanho.
O tratamento para o tipo de
doença que não é detectada por um exame de laboratório é feito a partir de um
conjunto de várias coisas, mas acima de tudo é preciso muito respeito e muito
amor.
De vez em quando tento me lembrar de como eu estava
quando fui internada. É um exercício muito curativo. Quando abro o jogo para
alguém que tem questões como as minhas, as coisas ficam mais tranquilas.
Eu falei abertamente com a filha da Fátima, que
estava morrendo de vergonha de mim. Contei minha história, disse que tinha
passado por algumas internações e que durante muito tempo fui desacreditada e
achei que não tinha jeito.
A força da minha verdade e a minha realidade atual
trouxeram um alento para ela. "É difícil para caramba, mas é possível
viver bem", falei olhando bem fundo nos olhos dela e dando um abraço
forte. Ela me olhou e disse: "Mas você?".
A doença é sigilosa. "Eu hoje estou aqui, mas
sei exatamente o que você está passando e o que sua mãe também está.
A minha
vida só ficou tranquila depois de internações e muitas outras coisas. É
preciso, acima de tudo, paciência", falei, com lágrimas nos olhos.
Eu sei que não resolveu, mas tenho certeza de que
ajudou. E a sensação de paz que sinto quando presto um serviço desses é enorme.
ALICE S. – coluna jornal FSP