CINGAPURA: A FORÇA DE UMA LIDERANÇA


“Nós temos que fazer diferente! Ou então não vamos sobreviver”. Esse foi o apelo recorrente de Lee Kuan Yew para os habitantes de Cingapura durante os primeiros anos de sua independência.

Ao estudar Direito em Cambridge, Lee Kuan Yew flertou com o Partido Trabalhista Inglês. Ao voltar para Cingapura, depois de poucos anos como advogado ajudou a fundar o Partido da Ação Popular, cujas primeiras reuniões foram feitas na sala da sua residência.

O sucesso de seu governo residiu, acima de tudo, na visão estratégica, na capacidade de articular politicamente interesses diversos, na habilidade de induzir e juntar as pontas das forças nacionais e internacionais, tanto da política como do mercado.

Ainda que construísse um Exército forte para defender “um pedacinho de terra”, Lee sabia que dificilmente conseguiria resistir a uma eventual investida militar de um dos países vizinhos com sonhos expansionistas. Por essa razão, articulou-se habilmente com países importantes, inseriu Cingapura na Commonwealth (organização derivada da antiga Comunidade Britânica), estreitou laços com os Estados Unidos e estabeleceu relações com a China.

Nas campanhas que dirigiu para tornar Cingapura uma cidade limpa e que preza a higiene, não apenas para prevenir doenças mas também para melhorar a autoestima dos moradores, Lee Kuan Yew varreu e lavou ruas com as próprias mãos.

Em suas memórias (From Third World to First – The Singapore Story: 1965-1990), Lee conta que ao fazer uma visita à Índia, numa época em que o governo indiano pregava a austeridade, ali testemunhou, perplexo, o desperdício oficial com bebidas em uma cerimônia diplomática. Parecia um fato sem importância, mas Lee questionava o erro primário: “se o governo pede sacrifício ao povo, mas não dá o exemplo, fica sem credibilidade”.

Ciente do papel da liderança, Lee Kuan Yew conversava diretamente com os cingapurianos para abordar os mais variados assuntos: mostrar aos pais que a melhor escola é aquela que começa em casa; estimular os jovens a ver no estudo o meio mais seguro de ascensão social; convencer o povo sobre a prática saudável dos esportes; pregar a vantagem de ser gentil com os turistas não apenas como um diferencial competitivo, mas porque o mundo seria melhor com mais gentileza; e assim por diante.

Em sociedades mais abertas, como a brasileira ou a norte-americana, os críticos logo poderiam dizer que o Presidente da República ou o Primeiro-Ministro, ao abordar tais questões, estaria invadindo espaços subjetivos e ferindo a liberdade individual. Mas exatamente não seria esse o papel da liderança? O que teria sido dos ingleses e, por tabela, do mundo, não tivesse Winston Churchill penetrado nos sentimentos mais íntimos de um povo para convencê-lo a resistir e não perder sua autoconfiança?

Lee falou repetidamente aos cingapurianos que a riqueza sem o trabalho duro não passaria de uma fantasia fugaz. Não haveria desenvolvimento sem uma forte poupança interna, a qual deveria começar em casa, de forma voluntária, e também compulsória, daí a importância que ganhou em Cingapura a capitalização para financiar as aposentadorias, a saúde e a aquisição da casa própria.

Ao conceber as instituições, como o parlamentarismo, as eleições, as agências reguladoras, os fóruns permanentes de planejamento e de integração das diversas políticas públicas, Lee emprestou a força de sua personalidade para iniciar o processo de despersonalização do poder.

A trajetória de Lee Kuan Yew ilustra a tese de que ao lado de um grande homem há sempre uma grande mulher. Casou-se com uma amiga desde os tempos de colégio, que também foi sua colega de universidade na Inglaterra, Kwa Geok Choo, sua confidente e parceira das horas certas e incertas, com a qual viveu até ela morrer, em 2010, e com quem teve três filhos.

Ao deixar o cargo de Primeiro Ministro em 1990, sucedido por um dos membros de seu gabinete e que ficaria nessa posição até 2004, Lee ainda atuou formalmente como “Ministro Mentor” por mais alguns anos. Hoje o primeiro-ministro de Cingapura é seu filho mais velho, Lee Hsien Loong, dono de um currículo notável.

O estilo de Lee Kuan Yew é simples como simples são suas verdades, algumas bem polêmicas. Seu projeto de país considera que todos devem ter as mesmas oportunidades, independentemente de origem ou riqueza, especialmente na educação, mas acredita que as pessoas, intelectualmente consideradas, não são iguais. Para ele, a imprensa não pode ter em países jovens o mesmo papel e a mesma liberdade que tem em sociedades com instituições centenárias como na Europa. Adepto da disciplina, Lee defendeu punições severas para as infrações sociais, inclusive com sanção física, teorizando sem inibição sobre a força pedagógica do exemplo para influenciar comportamentos coletivos.

Lee dirigiu-se ao povo cingapuriano e defendeu que para recrutar os melhores quadros para o Governo, para evitar a corrupção nas instituições públicas, os salários dos membros dos Poderes da República de Cingapura deveriam ser equiparados aos da iniciativa privada. Por isso, o salário do Primeiro Ministro é de R$ 5 milhões por ano, de longe o maior do mundo. O salário de um membro da Suprema Corte é de R$ 4 milhões por ano. O fundamento conceitual é a meritocracia no serviço público. Poderíamos perguntar: o que parece mais honesto: essa prática realista, ou pagar a um governador de um grande estado brasileiro, com enormes responsabilidades, R$ 10 mil por mês, valor inferior a qualquer cargo de procurador público em início de carreira?

Por essa visão de mundo, uns dizem que o segredo do sucesso de Lee foi dirigir Cingapura como uma empresa. Não é bem assim. É verdade que seu governo foi marcado pelo planejamento estratégico, fixação de metas, escolha tanto quanto possível dos melhores quadros e busca obsessiva por resultados, mas governar um país, construir uma nação, é muito mais complexo que administrar uma corporação. Lee Kuan Yew não é um tecnocrata ou um gerente, mas sim um generalista que tem sensibilidade e sabe lidar com gente.

Para Henry Kissinger, intelectual com experiência de poder, Lee Kuan Yew é o político com a cabeça mais privilegiada que ele já conheçou. Richard Nixon e Tony Blair vieram consultá-lo antes de saírem em suas campanhas vitoriosas rumo ao poder em seus países. Deng Xiaoping, que tirou a China do buraco após o desastre de Mao Tse-Tung, visitou Cingapura para copiar o que se passava por aqui. Bill Clinton o situa entre os maiores líderes mundiais dos últimos cinquenta anos.

Lee Kuan Yew completará noventa e um anos de idade em setembro deste ano. Tendo sido um líder carismático, é avesso ao histriônico. Ao buscar a razão nos atos de governo, não cometeu o erro de ignorar a vibração das relações afetivas. Foi um sonhador ousado, talvez inspirado na Utopia de Thomas Morus, e nem por isso deixou de ser pragmático. Não enveredou para a propaganda de exaltação da personalidade. Por isso tudo, é difícil enquadrá-lo nos estereótipos das prateleiras da política.

O legado de Lee Kuan Yew vai durar? Não se sabe. O mundo contemporâneo é marcado pela instabilidade e interdependência. Hoje Cingapura é a meca das grandes grifes, em meio a jardins e orquídeas. Graças ao planejamento e à disciplina, os jovens cingapurianos tem tirado o primeiro lugar nas olimpíadas de matemática. Mas até quando? A preocupação de Lee Kuan Yew é que a nova geração, sem a memória dos tempos difíceis, possa achar que o sucesso chegou por acaso, daí sua ideia fixa sobre o nível educacional, tema do próximo artigo.

Adacir Reis - advogado e presidente do Instituto San Tiago Dantas de Direito e Economia.

Fonte: Diário dos Fundos de Pensão

Tel: 11 5044-4774/11 5531-2118 | suporte@suporteconsult.com.br