Contra vício digital, neurocientista propõe vetar telas a crianças de
até 6 anos
Em
novo livro, Michel Desmurget argumenta que dependência prejudica aprendizagem.
Jovens entre 13 e 18 anos usam aparelhos digitais
para fins recreativos por aproximadamente sete horas e meia por dia. Para uso
escolar, no entanto, o tempo médio se resume a uma hora.
Dados como esses chamam a atenção de Michel
Desmurget, neurocientista e diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde
da França, e estão presentes no seu novo livro, "A Fábrica dos Cretinos Digitais:
Os Perigos das Telas para as nossas Crianças" (Editora Vestígio).
Na obra, o neurocientista trata dos perigos que o mundo digital traz para o processo de
aprendizado em crianças e adolescentes e defende a diminuição
do uso de aparelhos tecnológicos, abordando sete passos que poderiam ajudar
nesse processo.
"Como mostra o conhecido programa Pisa (Programa Internacional de
Avaliação de Alunos, na sigla em inglês), por exemplo, quanto mais
um sistema educacional investe em tecnologias digitais, pior é o desempenho
acadêmico de seus alunos em matemática, linguagem e ciências", afirma
Desmurget em entrevista por email à Folha.
O autor defende que os produtos com telas digitais
são utilizados por jovens principalmente para fins recreativos e pouquíssimo
para estudo. Conteúdos audiovisuais, como filmes, séries e reality shows,
figuram em primeiro lugar na ordem de consumo, seguidos por videogames e, na adolescência, pelas redes sociais.
"Os usos da tela para o dever de casa
representam apenas uma fração marginal do tempo total de tela", afirma.
O hábito
acarreta problemas para o processo de aprendizagem, como déficit de atenção, distúrbios de concentração
e impulsividade que diminuem o desempenho escolar dos jovens.
Um estudo realizado na Inglaterra chegou à
conclusão de que o consumo digital impactava negativamente as notas dos
estudantes de um exame realizado para certificados de conclusão do ensino
médio.
Segundo a pesquisa, a adesão a mídias digitais em
uma hora por dia durante os 18 meses anteriores do exame já reduziria o
desempenho dos alunos quando comparado ao não uso dos aparelhos.
Esse cenário de produtos digitais com uso
exacerbado para fins recreativos piorou ainda mais com a Covid-19. "A
pandemia não modificou esse desequilíbrio [entre mais horas para lazer e poucas
para estudo]. Muito pelo contrário, enquanto os usos escolares aumentaram, o
uso recreativo explodiu", diz.
A crise sanitária do coronavírus também ratificou
outros problemas do ensino digital, como o fato de que poucos têm acesso a equipamentos tecnológicos de
qualidade, o que pode causar aprofundamento de desigualdades
sociais.
Para Desmurget, o fechamento das escolas desde o ano passado foi um
desastre e uma tática dos governos "para economizar
dinheiro substituindo o tempo humano, caro e qualificado, por tempo de
computador, barato e automatizado".
A desvalorização dos professores, inclusive, é
um ponto abordado no livro —o autor argumenta que a escassez de mão de obra
qualificada entre profissionais da educação é uma das razões do crescimento do
ensino digital.
"Em muitos países, a escassez de professores
qualificados é brutal (...). O ensino digital resolve esse problema",
afirma.
No entanto, esta substituição de profissionais da educação por
instrumentos tecnológicos é uma tentativa inadequada, já que
exemplos demonstram que a educação presencial com professores ainda se motra
superior ao ensino digital.
Ele cita o caso da França, onde reside. O
país reabriu suas escolas poucas semanas depois da suspensão
das aulas presenciais porque, mesmo com os investimentos que
envolveram milhares de euros para a implementação do ensino digital,
percebeu-se que o fechamento das escolas tinha sido um grande fracasso
pedagógico, segundo o neurocientista.
Outra crítica de Desmurget se volta à ideia de
"nativos digitais".
O termo se refere à geração que nasceu imersa no
universo tecnológico e, por isso, teria capacidades cognitivas mais adaptadas a
essas tecnologias. Para ele, trata-se de uma falácia, uma vez que não existem
evidências científicas que confirmem isso.
Segundo o autor, há, entretanto, pesquisas que
sustentam que grande parte das pessoas mais velhas consegue se adaptar plenamente a
ferramentas digitais. Portanto, o desenvolvimento de habilidades
para utilizá-las não se reserva aos mais jovens.
Outro exemplo utilizado para rebater o argumento de
"nativo digital" também está relacionado a pesquisas. Surgiram
estudos que sugeriam o aumento do cérebro de jovens jogadores de videogame em
comparação ao de quem não jogava, o que ratificaria a ideia de uma
superioridade de "nativos digitais".
Desmurget, o entanto, afirma que "‘um cérebro maior’ não
constitui um indicador confiável de inteligência" porque qualquer operação
que uma pessoa faça repetidamente pode resultar no aumento cerebral.
O neurocientista cita uma pesquisa que relacionou o uso de
videogames e televisões com a diminuição da capacidade de memorização. Nesse
estudo, jovens de 13 anos receberam a tarefa de aprender uma lista de palavras.
Depois, foram divididos em três grupos: um assistiria a um filme na televisão;
outro jogaria videogame; e o terceiro cumpriria qualquer atividade com exceção
das duas últimas.
No outro dia, mensurou-se a quantidade de palavras esquecidas
pelos integrantes de cada um dos grupos. O resultado: o que jogou videogame foi
o que mais esqueceu os elementos, seguido daquele que assistiu ao filme.
Mesmo
com suas críticas, o trabalho de Desmurget não é totalmente contra o uso de recursos tecnológicos por crianças e
adolescentes. "É óbvio que os alunos precisam aprender
algumas habilidades básicas de informática (codificação, uso de software de
escritório, lidar com privacidade de dados etc.)."
Para
lidar com a situação e modificar o panorama de tempo dedicado a aparelhos
digitais, o autor afirma que "a primeira (principal) etapa é envolver as
crianças e, se possível, obter seu acordo sobre uma série de regras
fundamentais."
Nesse
caso, o autor sugere sete regras que poderiam reverter o quadro viciante ao qual jovens estão submetidos.
A
primeira delas é a suspensão total das telas para crianças com menos de seis
anos. "A ausência de exposição digital durante os primeiros anos da vida
não provoca nenhum impacto negativo a curto ou longo prazo," afirma o
especialista no livro.
As
outras seis iniciativas seriam para crianças com mais de seis anos e envolvem
tempo médio de uso entre 30 e 60 minutos de aparelhos com telas digitais, uso
de um aparelho por vez, proibição de conteúdos inapropriados para menores, não
utilização de dispositivos nos quartos, antes de dormir e antes de ir à escola.
Mais
do que somente aplicar essas ações, segundo o autor, é importante envolver os
jovens para que entendam que "as regras não têm o objetivo de puni-las ou
frustrá-las."
Prova
disso, diz Desmurget, são estudos realizados sobre como crianças e jovens
normalmente seguem as regras quando entendem por que são aplicadas.
Michel Desmurget - um pesquisador francês especializado em
neurociência cognitiva.