Na atividade empresarial, tal como nos mais diversos segmentos, há setores conservadores e setores progressistas, ou mesmo de vanguarda. Avançar de uma posição conservadora para outra de vanguarda significaria uma evolução, no sentido de adequação às premências dos novos tempos.
O Direito, produto cultural, reflete, em seus diversos ramos, o grau de evolução do setor da vida social a que se propõe regular. Daí também haver segmentos jurídicos mais ou menos progressistas. Quem se dedicou a observar o Direito nos últimos anos pôde concluir o enorme avanço dos chamados novos direitos. Para o que nos importa, primeiramente, o Direito do Consumidor e o Direito Ambiental são exemplares, neste sentido. Aliás, fora de dúvida a enorme conexão entre estes ramos jurídicos, pois “ambas as disciplinas refletem a necessidade de adaptação do Direito ao processo de massificação das relações sociais, bem como da crescente industrialização e novas práticas econômicas levadas a efeito especialmente a partir do período Pós-Segunda Guerra Mundial.
A violação aos direitos do consumidor e a degradação ambiental são ‘externalidades’ de uma nova realidade socioeconômica, e o Direito respondeu a isso, com o propósito de proteger os direitos fundamentais do indivíduo e da coletividade” (SARLET; FENSTERSEIFER, 2014. p. 392). Estes ramos jurídicos trouxeram novos compromissos à sociedade, ao Estado e ao mercado. Muito fortemente ao mercado de seguros, que está absolutamente atento a essas novas realidades, pelo que se conclui, de antemão, sem qualquer dúvida, que não se trata de um mercado conservador. No máximo com um tempo de maturação diferenciado, mas absolutamente progressista, pois também é um mercado moderno aquele que está aberto às necessidades dos novos tempos. A assertiva pode ser comprovada, nos limites deste texto, com duas abordagens, a seguir desenvolvidas, quais sejam: o compromisso com a sustentabilidade e a disponibilização de produtos para a gestão dos riscos ambientais.
Antes, porém, é apropriado vincular as variáveis ambientais, securitárias e de consumo, o que é possível a partir do elemento risco. Há inúmeras maneiras de correlacionar as questões ambientais e de consumo com o mercado de seguros e, por conseguinte, tra- çar aproximações entre o Direito dos Seguros, Direito Ambiental e Direito do Consumidor. Segundo os pressupostos já fixados, há que se priorizar o elemento risco (e a gestão dos riscos) como fator de conexão entre os três segmentos.
Um dos mais influentes estudiosos da teoria do risco é o sociólogo alemão Ulrich Beck, recentemente falecido. Ele desenvolve sua teoria da sociedade de risco visando a retratar uma etapa do desenvolvimento da sociedade moderna em que as ameaças – sociais, políticas, econômicas ou individuais – tendem cada vez mais a escapar dos mecanismos de controle, sejam do Estado ou da sociedade. Essa teoria enfrenta o momento de percepção da ocorrência de uma virada: não a de um modelo, mas de percepção das implicações desse modelo. A percepção do descontrole. A sociedade de risco representa um momento da sociedade industrial em que, pela ocorrência de eventos significativamente maléficos, nos deparamos com a constatação dos resultados negativos e da insustentabilidade no modo de produção e no modo de vida estabelecido.
Para melhor ilustrar, vale distinguir dois momentos, o que Beck (1997) denomina de modernidade simples e modernidade reflexiva. A modernidade simples, ou primeira modernidade – que coincide com a etapa inicial da sociedade industrial –, caracteriza-se como o período em que as autoameaças são sistematicamente produzidas e aceitas pelo homem, já que estão conforme os padrões da sociedade industrial.8 Soma-se à crença na sustentabilidade de tal modelo – pois, de fato, nenhum acontecimento, até então, levava a pensar o contrário.
A modernidade reflexiva, por outro lado, é o momento do embate: a autoconfrontação do modelo. Trata-se do momento em que começam a se concretizar – agora são percebidas, sentidas, visíveis – aquelas ameaças construídas pela sociedade industrial. Essa transição para a modernidade reflexiva não é uma escolha e nem foi programada, mas “ela surge na continuidade dos processos de modernização autônoma, que são cegos e surdos a seus próprios efeitos e ameaças” (BECK, 1997,p. 16). A percepção da autoconfrontação é que caracteriza o risco. A sociedade de risco é aquela que se segue à sociedade industrial, sem, no entanto, implicar o advento de outro modelo. O que ocorre é a evolução daquele modelo industrial, acrescida de um novo elemento, isto é, o que se percebe agora é a convivência diuturna com as ameaças que decorrem da própria ação humana.
O elemento risco, deste modo, deixa de ser compreendido como uma ameaça externa para ser encarado como fruto da própria fase evolutiva. Nossa sociedade, que ainda segue a matriz industrial e desenvolvimentista, passa a conviver com as consequências do modelo. O sucesso deste pode resultar em seu colapso ou, em outros termos, o “ocidente é confrontado por questões que desafiam as premissas fundamentais do seu próprio sistema social e político” (BECK, 1997, p. 11). A partir desses elementos conceituais sucintamente apresentados, já temos subsídios para vincular a questão ambiental e de consumo com o segmento dos seguros.
O Direito Ambiental e o Direito do Seguro trabalham essencialmente com situações de exposição ao risco. Geralmente, são exposições a que está sujeita toda a coletividade. Não é por outro motivo que os princípios da prevenção e da precaução estão no cerne do Direito Ambiental e cada vez mais ganham ênfase pelo Direito do Consumidor. Diante da percepção dos riscos há uma responsabilidade geral, não só jurídica, mas especialmente ética, de enfrentamento do risco, de modo a evitá-lo ou a mitigar seus efeitos nefastos, o que se traduz na necessidade de gestão dos riscos.
A transferência de riscos para um ente profissional, devidamente organizado e capacitado, portanto, é expressão importantíssima da gestão de riscos. Isso serve não só para que esse ente profissional reponha patrimônios ou preste auxílio em caso de consumação das situações de riscos, mas essencialmente para que se formem bases para propiciar um agir preventivo e precaucional. O seguro faz isso, há muito tempo, e atualmente direciona cada vez mais seu foco para riscos novos, grandes e complexos.
Evidente a conclusão, portanto, da simétrica correlação do seguro com a questão ambiental e das relações de consumo. Tudo a propor a cada vez maior conexão entre os operadores, jurídicos ou não, desses três segmentos. Agir com prevenção e precaução, diante de riscos ambientais ou riscos ao consumidor, portanto capazes de afetar toda a coletividade, vincula-se à inserção do elemento da sustentabilidade.
E não há hoje valor mais vanguardista do que a sustentabilidade. Trata-se, como ensina Veiga (2010), de um conceito baseado no “duplo imperativo ético de solidariedade sincrônica com a geração atual e de solidariedade diacrônica com as gerações futuras. […] [A sustentabilidade] compele a trabalhar com escalas múltiplas de tempo e espaço, o que desarruma a caixa de ferramentas do economista convencional. Ele impele ainda a buscar soluções triplamente vencedoras (isto é, em termos sociais, econômicos e ecológicos), eliminando o crescimento selvagem obtido ao custo de elevadas externalidades negativas, tanto sociais quanto ambientais” (VEIGA, 2010, p. 171-172).
Clara resta a relevância dos seguros no cenário posto. No tópico seguinte será abordado o compromisso do mercado segurador com a variável da sustentabilidade.A inserção da sustentabilidade nas práticas sociais e econômicas vincula-se à ideia de responsabilidades, portanto, de deveres. Deveres de todos, frise-se, inclusive por comando constitucional constante do artigo 225, caput.
Sobre deveres, interessante é citar importante passagem de recente trabalho de Carlini e Faria (2014), quando demonstram que “a importância dos deveres dos cidadãos não escapou à Organização das Nações Unidas que, no documento Declaração sobre o Direito e a Responsabilidade dos Indivíduos, Grupos ou Órgãos da Sociedade de Promover e Proteger os Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos (Defensores de Direitos Humanos) adotado na Res. 53/144 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 09.12.1998, determina em seu art. 18:
‘1. Todos têm deveres para com a comunidade e no seio desta, fora da qual o livre e pleno desenvolvimento da respectiva personalidade não é possível;
2. Os indivíduos, grupos, instituições e organizações não governamentais têm um papel importante a desempenhar e a responsabilidade de defender a democracia, proteger os direitos humanos e liberdades fundamentais e contribuir para a promo- ção e progresso das sociedades, instituições e processos democráticos;
3. Os indivíduos, grupos, instituições e organizações não governamentais têm também um papel importante a desempenhar e a responsabilidade de contribuir, conforme necessário, para a promoção do direito de todos a que reine, no plano social e no plano internacional, uma ordem capaz de tornar plenamente efetivos os direitos e liberdades enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem’. Importante ressaltar que as premissas fundamentais da ONU são que todos têm deveres para com a comunidade, para a promoção do progresso da sociedade e têm responsabilidade de contribuir para a promoção do direito de todos” (CARLINI; FARIA, 2014, p. 79).
Os deveres para com as práticas sustentáveis, deste modo, não podem escapar dos compromissos do mercado segurador, muito especialmente na sua relação com os consumidores. Polido (2014), discorrendo sobre os pressupostos de desenvolvimento (sustentável) do mercado de seguros, propõe, entre outras iniciativas, no que se refere à relação com o consumidor, o “estímulo à cultura do seguro no Brasil, através de publicidades institucionais bem elaboradas, além da livre-iniciativa de cada uma das seguradoras do mercado. Ingerência junto ao governo no sentido de incluir a disciplina ‘contratos de seguros’ nos programas de graduação e de pós-graduação das faculdades de Direito, Economia e Administração, com incentivos de treinamentos in company nas seguradoras, corretoras de seguros e resseguradoras, através de programas de trainees. […]
A cultura do seguro precisa ser estendida também à sociedade consumidora de seguros, quer em relação aos produtos massificados, quer em rela- ção aos médios e grandes riscos. Deve ser incentivada a busca do ‘melhor produto’ pelos consumidores desses diferentes grupos e de modo que os segurados sejam orientados a não buscarem mais tão somente o ‘menor preço’. Práticas comerciais, inclusive de intermediação dos negócios, devem acentuar o interesse e a necessidade dos consumidores em conhecerem previamente o conteúdo dos contratos de seguros, assim como o Código de Defesa do Consumidor já determina (art. 46)” (POLIDO, 2014, p. 110-111).
O comprometimento do mercado segurador com práticas de sustentabilidade fica evidenciado com a adesão aos PSI: Princípios para Sustentabilidade em Seguros, propostos pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA15, dentre os quais destacamos, no que toca especialmente à relação seguradores, consumidores e meio ambiente, os seguintes compromissos:
Princípio 1 – Incluiremos em nosso processo de tomada de decisão questões ambientais, sociais e de governança que sejam relevantes para nossa atividade em seguros.
Ações possíveis: Administração de sinistros • Responder aos clientes sempre de forma rápida, ética, sensível e transparente, e certificar-se de que os processos de sinistros sejam explicados e entendidos claramente; • Integrar questões ASG16 aos serviços de reparos, reposições e demais serviços de sinistros;
Princípio 2 – Trabalharemos em conjunto com nossos clientes e parceiros comerciais para aumento da conscientização sobre questões ambientais, sociais e de governança, gerenciamento de riscos e desenvolvimento de soluções.
Ações possíveis: Clientes e fornecedores • Dialogar com clientes e fornecedores sobre os benefícios da gestão de questões ASG, e sobre as expectativas e exigências da companhia em relação às questões ASG; • Fornecer aos clientes e fornecedores informações e ferramentas que possam auxiliá-los na gestão de questões ASG; • Integrar questões ASG aos processos de concorrência e seleção de fornecedores; • Estimular clientes e fornecedores a divulgarem questões ASG e a usarem as estruturas relevantes de divulgação ou relatório;
Princípio 3 – Demonstraremos responsabilidade e transparência divulgando com regularidade, publicamente, nossos avanços na implementação dos Princípios.
Ações possíveis: • Avaliar, medir e acompanhar o progresso da companhia na gestão de questões ASG e, de forma proativa e regular, divulgar esta informação para o público; • Participar nas estruturas relevantes de divulgação ou relatório; • Dialogar com clientes, órgãos reguladores, agências de classificação e outros públicos estratégicos, a fim de obter entendimento mútuo sobre o valor da divulgação por meio dos Princípios.
Tais princípios são de adesão espontânea. Incluem valores muito mais complexos do que o meramente econômico. Sinalizam novas práticas empresarias. Assumir compromissos de tal envergadura, como o fez o mercado segurador, só se justifica com a premissa de que se trata de um mercado verdadeiramente engajado com as relevantes preocupações da contemporaneidade. A efetiva implementação de tais princípios de sustentabilidade pelo mercado segurador, por certo, ocorrerá gradualmente (como, aliás, vem ocorrendo em outros segmentos empresariais e mesmo pela sociedade e pelo Poder Público), contudo, muito interessante a constatação contida em pesquisa recentemente publicada de que as metas de concreção dos princípios, pelo mercado, estejam em elevado grau de incorporação nas práticas securitárias.
É momento de aperfeiçoamento dessas práticas, com o compartilhamento das técnicas internas já implementadas, de modo a permitir o aperfeiçoamento e difundir o desenvolvimento de programas internos por outras empresas, construindo novas ideias, visando a propiciar uma ação conjunta e organizada de todo o mercado segurador na devida incorporação dos princípios, tornando seus objetivos práticas correntes.
O mercado segurador, além de comprometido com a sustentabilidade, cada vez mais se mostra disposto a atuar como protagonista e parceiro na gestão de riscos ambientais, o que vem ocorrendo pelo crescente desenvolvimento de produtos para riscos ambientais. O caminho para implementação de um seguro para riscos ambientais, no Brasil, está sendo percorrido já há alguns anos. Contudo, é “importante destacar, neste momento, que as iniciativas anteriores, ainda que não tenham sido plenamente satisfatórias, tiveram, sim, o condão de propiciar reflexões suficientes sobre este complexo tema e que repercutiram no seu estágio atual de desenvolvimento, agora com nítidas e objetivas possibilidades de concretização dos seguros, de diferentes formas” (POLIDO, 2014, p.15).
Polido (2014), em texto recente, mostra-se otimista quanto aos avanços nesta seara, afirmando que “rompe definitivamente com o passado recente e anuncia o atual estágio de desenvolvimento dos seguros ambientais no Brasil. Sim, os seguros específicos de riscos ambientais agora, de fato, existem e estão disponíveis a quem interessar e a quem puder contratá-los. […] Há, então, no Brasil contemporâneo, e essencialmente em razão da abertura do resseguro, programas de coberturas para seguros de riscos ambientais, assim como eles já existiam em outros mercados desenvolvidos, especialmente nos EUA” (POLIDO, 2014, p.16-19).
Insiste-se: um mercado disposto a atuar com riscos tão complexos, num cenário jurídico ainda incerto é, sem qualquer dúvida, corajoso e disposto operar de forma progressista para o desenvolvimento sustentável, em proveito do meio ambiente e do consumidor.
Pery Saraiva Neto - doutorando em Direito, mestre em Direito, especialista em Direito Ambiental, é professor (graduação e pós-graduação), membro do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental e Ecologia Política na Sociedade de Risco/UFSC. Advogado e Consultor Jurídico.