O Vale do Silício está
estagnado?
Parte do seu brilho, o ‘soft power’, se perdeu, mas ‘hard power’ segue
intacto como nunca.
Terminou há pouco o Burning Man, festival anual que
acontece no deserto de Nevada, nos EUA. A origem do festival é a cultura de
experimentação originada na Califórnia, que reúne de outsiders a comunidades
alternativas.
No entanto, nos últimos anos o festival foi tomado por
participantes da área de tecnologia, virando uma espécie de festa anual
do Vale do Silício.
A edição de 2023, no entanto,
foi diferente.
Choveu forte no deserto, e a poeira dos últimos anos foi
substituída por lama. Isso dificultou o deslocamento interno e externo, e
autoridades locais recomendavam aos que estavam no festival que economizassem
comida e água.
Muitas fotos circularam de pessoas se deslocando com dificuldade
em meio ao lamaçal.
Essas imagens não demoraram a
ser interpretadas como uma metáfora do próprio Vale do Silício. O glamour e o
hype dos últimos anos foram substituído por mal-estar e sentimento de
estagnação.
A cidade de San Francisco, berço do Burning Man, também virou
simbólica. Tornou-se uma mistura de afluência e pobreza, resultante
de sua proximidade com o Vale.
É nesse sentido que muita gente
tem se perguntado: o Vale do Silício continua inovador?
Certamente o surgimento
da atual geração de IA (inteligência artificial) é relevante. No
entanto, é uma onda que surge junto com um backlash contra ela mesma.
Mal a IA
generativa surgiu, e um conjunto de demandas contra ela se formou. Está sendo
bloqueada por empresas.
Autores e criadores demandam direitos autorais. Vários
países (incluindo os EUA) trabalham para criar leis e regulações para a IA.
Uma das grandes inovações mais
recentes no modelo de negócio das grandes empresas do Vale do Silício já tem
mais de 13 anos. Trata-se da coleta massiva de dados, aliada a publicidade
direcionada.
Esse modelo foi tão bem-sucedido economicamente que gerou uma
certa acomodação. Mais de uma década passou e tudo permaneceu praticamente do
mesmo jeito.
Curiosamente, foi preciso Elon Musk adquirir o Twitter para que um pouco de
experimentação no modelo de receitas voltasse a acontecer.
Musk vem tentando
cobrar pelo selo de autenticação na plataforma. Está também caminhando para
implementar biometria no Twitter (agora X), como base para outros serviços,
inclusive financeiros.
Outras empresas notaram esses
esforços e fizeram o mesmo. A Meta agora também vende o selo de autenticação.
Reportagem do jornal The New York Times na semana passada afirma que a
empresa vai experimentar também um serviço de assinatura.
Os
usuários que pagarem não verão anúncios na plataforma. Algo que o YouTube
Premium vem fazendo também.
No entanto, a grande inovação atual do Vale é o avanço da Starlink como um provedor
global de internet por meio de satélites de baixa órbita.
É a primeira vez que
uma única empresa ambiciona se tornar um provedor universal de acesso à
internet.
Os serviços de todas as outras empresas de internet passam a ser
prestados em cima da sua infraestrutura. Quem controla a conexão tem o poder de
controlar praticamente tudo.
Musk já exerceu esse seu novo tipo de poder
na Ucrânia, desligando o serviço em regiões
estratégicas que ele mesmo definiu.
Em suma, é um erro apostar no
declínio do Vale do Silício. Ele perdeu parte do seu brilho, do seu "soft
power". Já o seu "hard power" continua intacto como nunca.
RONALDO LEMOS - advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de
Janeiro.