Todo mundo precisa ter problemas
Só com sensação de
controle sobre a própria vida se deixam os outros em paz
Minha
avó ficava ótima quando tinha um problema legítimo de saúde que consumia sua
atenção. Em retrospecto, nunca foi nada gravíssimo.
Ela tinha bronquite
crônica, era hipertensa, tinha artrite e artrose e vivia reclamando da barriga
estufada e dolorida quando comia —o que ela atribuía a uma "hérnia de
hiato", mas eu tenho convicção de que era intolerância ao glúten dos bolos
e biscoitos que ela amava, e que eu herdei.
Os
telefonemas no meio da noite com algum surto, em geral benigno e sempre
tratável, à exceção do derradeiro, eram frequentes na minha infância, e a gente
brincava de dizer que a vovó adorava ver um médico —como meu avô, 22 anos mais
velho que ela e que morreu quando ela mal tinha completado 60.
Vovó
ficava ótima, sim, quando lidava com seus pequenos e recorrentes revertérios de
saúde, que lhe davam oportunidade de se sentir perfeitamente no controle da sua
própria vida.
Esses eram também os períodos em que a família vivia em paz.
Quando a sua saúde estava perfeita, ela voltava sua atenção para a vida alheia,
se metia onde não era chamada, e criava problemas para os outros —e assim ela
tinha um novo problema para resolver.
Eu
hoje, neurocientista, entendo perfeitamente. Aprendi que a chave para o
bem-estar está na sensação de controle sobre a própria vida e que, por
definição, só há "controle" onde existe algo a ser controlado: um
problema ao alcance da nossa competência.
Por
isso os tempos de calmaria, teoricamente ideais, nem duram nem são ideais de
fato. Se não há problemas para resolver, criamos um, e ainda chamamos de
"propósito".
Pode ser chamado de hobby, projeto de aposentadoria, mas
também neto, nora, vizinho —ou imigrantes e outras pessoas estranhas em
aparência, ideias ou religião.
Acho
que agora entendo a obsessão de cada vez mais gente mundo afora em controlar a
vida dos outros, num flerte global com o autoritarismo que já descamba para a
execução.
Quem vive cronicamente estressado, com subemprego e exploração
socioeconômica, apanhando da vida, precisa da sensação de controle de poder
baixar o cacete em alguma outra coisa ou alguém ainda mais na miséria.
Para
quem vive cheio de problemas, ir às redes sociais se meter nos direitos alheios
oferece o alívio temporário tão necessário à sensação de impotência.
E quem vive no estado oposto de afluência
descansada precisa igualmente de um novo problema para resolver.
Com a vantagem
de gozar de tempo e dinheiro, muitas dessas pessoas vão se meter a controlar os
que vivem situações de merda tão profunda que requerem aborto, emigração ou novas chances,
negando-lhes tudo apenas porque elas podem.
Como fazer com que as pessoas parem de se meter na
vida alheia? Eu achava que a solução era educar e empoderar, mas agora me dou
conta de que isso não basta.
É preciso dar a todos problemas superáveis para
focarem suas energias. Só deixa os outros em paz, e ainda oferece ajuda, quem
tem os meios e também aquela quantidade saudável de seus próprios problemas por
resolver.
Nas sociedades saudáveis, os indivíduos têm
problemas contornáveis, competências construtivas e oportunidades para criar,
não para cercear.
Vovó morreu aos quase 91 anos completos sem nunca
ter tido um único câncer ou qualquer sinal de demência. Não foi da pneumonia
nem do infarto, que ela achava sempre estarem à espreita: foi de obstrução
intestinal, coisa mais besta.
Alguns problemas são insuperáveis, mas a vida é
feita de todos os outros.
SUZANA
HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da
Universidade Vanderbilt (EUA)