'Para bombar, tem que provocar polêmica!'


'Para bombar, tem que provocar polêmica!'

Como se sentir um peixe fora d'água nas redes sociais.

Demorei muito a ter computador. Escrevi as 600 páginas da minha tese de doutorado à mão e depois em uma máquina de escrever. 

Isso em 1994, quando todos os meus colegas já tinham computador. Demorei muito a ter FacebookInstagram e LinkedIn. 

Tenho o aparelho de celular mais barato que encontrei e não tenho grupos no WhatsApp.

A verdade é que só entrei no mundo virtual por me sentir obrigada. Nas minhas palestras, depois que tiravam fotos comigo, me cobravam: “Você não tem Insta? Quero te marcar”. 

Quando meu TEDx “A Invenção de uma bela velhice” viralizou no YouTube, as mulheres insistiram para que eu criasse um perfil no Insta. E hoje: “Mas você não tem Twitter? Não tem canal no YouTube?”

Acabei me rendendo e comecei a escrever uma espécie de diário da pandemia no Insta (e responder a todos que comentam meus textos). 

Descobri, assustada, que estou gastando 1 hora e 59 minutos no mundo virtual. Levei uma bronca de uma amiga: “O Insta não é lugar de textão e de tristeza, Mirian. Para bombar, tem que provocar polêmica!”.

Daí a minha surpresa quando um dos meus textões foi parar no programa de domingo da Eliana, no SBT, no dia 19 de setembro, lido pela psicóloga Ana Canosa. 

Recebi tantos pedidos para compartilhar o meu textão, que resolvi publicá-lo aqui.

“Sempre fui uma menina triste, muito triste. Continuo sendo.

Não me lembro de momentos felizes da infância, só de brigas, gritos e surras.

Só de violência.

Sempre fui uma menina medrosa, muito medrosa. Continuo sendo.

Pai, mãe, três irmãos que batiam, gritavam, brigavam e se odiavam.

Sempre fui uma menina invisível, totalmente apagada e muda. Continuo sendo.

Não abria a boca e me escondia dentro do armário para não apanhar ainda mais do que já apanhava só por existir.

Sempre fui uma menina para dentro de mim, introspectiva, tímida, interiorizada, reflexiva. Continuo sendo.

Sempre gostei mais de escutar do que de falar, de observar do que de me exibir, de ficar quietinha do que de brincar com outras crianças. 

Sempre tive muita dificuldade de ser o centro das atenções, de ir a festas e encontros sociais.

Sempre fui uma menina que sabia que era inferior a todas as outras meninas que eram amadas, felizes e lindas. Continuo sendo.

Invejava as meninas que tinham tudo o que eu não tinha: amor, carinho, presentes, roupas bonitas... e continuo não tendo.

Sempre fui uma menina muito ansiosa, angustiada e solitária. Continuo sendo.

Achava que só a morte poderia me libertar da prisão violenta. Não enxergava outra saída para o sofrimento por ter nascido em uma família que não sabia amar e proteger.

Sempre fui uma menina insegura, frágil e sem esperança. Continuo sendo.

Invejava as meninas felizes que tinham todo o amor e proteção que precisavam, e que podiam brincar, rir e descobrir o caminho para realizar todo o seu potencial.

Nunca brinquei de nada, nunca tive amigas, nunca ganhei presentes no Natal.

Nunca consegui dormir, de tanto pavor de não conseguir fugir daquele inferno.

Não consigo dormir até hoje.

Continuo a mesma menina que um dia fui.

Sofro muito quando tenho que me expor, não sei gritar, não sei falar alto, não sei competir, não sei brigar.

Como foi que me tornei uma mulher que se expõe tanto?

Com muito sacrifício, ansiedade, insegurança, medo e noites de insônia, até hoje.

Como essa menina tão frágil conseguiu sobreviver física e mentalmente em meio a violência, gritos e ouvindo todos os dias que era uma bosta?

Como essa menina tão invisível conseguiu realizar tantas coisas em um mundo tão ameaçador, competitivo e violento?

Como essa menina tão solitária, abandonada, excluída e rejeitada encontrou amigos e amores?

Como essa menina tão medrosa aprendeu a ser grata por tudo o que recebeu da vida?

Como essa menina tão vulnerável descobriu, aos 16 anos, o propósito da sua vida?

Como essa menina tão triste teve a coragem de escrever para conseguir sobreviver?

Como?

Até hoje não sei...”

 

MIRIAN GOLDENBERG - antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio, é autora de "A Bela Velhice".

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