A pandemia do novo coronavírus está colocando em teste
os sistemas de saúde de todo o mundo. Se, por um lado, é possível afirmar que
nenhum país consegue absorver com máxima eficiência uma escalada de pacientes
graves num curto período de tempo, por outro, é necessário avaliar e questionar
decisões político-econômicas tomadas nos últimos anos que, agora, deixam
evidente um sistema ineficiente e com graves falhas de regulamentação.
Há anos, advogados e entidades de defesa do consumidor,
corroborados por decisões judiciais, alertam sobre a inércia da Agência
Nacional de Saúde Suplementar (ANS) em implementar regras mais rígidas sobre os
conhecidos planos de saúde coletivos empresariais ou por adesão, atualmente
livres de qualquer regulação por parte da ANS.
Nos últimos 20 anos, o que vimos acontecer foi o boom na
oferta e contratação dessas modalidades: cerca de 80% dos planos de saúde
ativos no país estão dentro das categorias empresarial ou coletivo por adesão.
Os antigos planos familiares e individuais, passíveis de controle mais rígido
da ANS, estão cada vez mais escassos nas ofertas das operadoras. Alguns que
ainda comercializam essa modalidade sobrevivem, praticando até preços muito
abaixo do mercado, como forma de atrair os consumidores. O modelo praticado por
esses planos, em geral, prioriza a verticalização, ou seja, possuem hospitais e
equipes próprias e, dessa forma, conseguem ter o melhor controle dos gastos.
Aplicam, por exemplo, índices abaixo daqueles permitidos
pela ANS. Dessa forma, o impacto na mensalidade é reduzido. No entanto, a
qualidade na assistência à saúde deixa a desejar. E, novamente, a falta de
fiscalização da Agência reguladora evidenciou sua ineficiência.
Recentemente, um desses planos individuais e familiares
ganhou destaque na imprensa e críticas das autoridades sanitárias por problemas
relacionados à falta de qualidade no atendimento. Com foco em um público mais
idoso, com idade média de 68 anos e mensalidades com valor médio de R$ 1 mil, o
plano de saúde viu seus leitos e pronto atendimentos demandarem um volume
enorme de beneficiários. Desorganização, insuficiência de funcionários e gestão
incapaz de isolar adequadamente os infectados chamaram a atenção dos
profissionais das secretarias municipal e estadual de Saúde de São Paulo. O que
para alguns parecia a oportunidade perfeita para idosos terem acesso à saúde
privada a um baixo custo, especialistas já alertavam para a possibilidade de
colapso.
A falta de eficiência na tomada de decisão da agência
reguladora também se estende aos demais beneficiários dos planos de saúde. A
ANS prorrogou os prazos estabelecidos na Resolução Normativa 259, que define os
prazos para que os beneficiários tenham acesso a consultas, exames e
procedimentos, por exemplo.
Ou seja, os problemas que os consumidores já enfrentam
com os planos de saúde, cotidianamente, aumentam com a série de medidas que
estão sendo tomadas para que as operadoras evitem a superlotação dos hospitais
privados. Com a prorrogação dos prazos de atendimento, caso o beneficiário não
possa esperar o limite determinado pela ANS, a operadora precisa atendê-lo em
um hospital que esteja fora da rede credenciada. Outro ponto que a ANS deixou
de fora dessas novas medidas é a inadimplência em tempos de pandemia.
A Agência recomendou que os planos de saúde não
suspendam os contratos durante a pandemia, mas deveria ter estipulado regras
para que beneficiários e empresas tenham a garantia assistencial por um período
maior caso não consigam cumprir com os pagamentos.
Muito além da gestão de qualidade, que é de
responsabilidade dos planos de saúde, o atual caos no sistema de saúde mostra
que, mais uma vez, a ANS não age como uma autarquia, que tem como finalidade
institucional zelar pela defesa do interesse público na assistência suplementar
à saúde. Cabe a toda a sociedade questionar a permissividade da Agência frente
aos inúmeros problemas que consumidores registram mês a mês, principalmente em
um momento tão delicado para o sistema privado de saúde.
Renata
Vilhena Silva - advogada especializada em direito à saúde, sócia-fundadora do
escritório Vilhena Silva Advogados.