Texto
foi desfigurado o texto para, em vez de reduzir a aplicação do certificado,
aumentá-la.
O Brasil tem avançado em transformação digital no âmbito do governo federal.
Um esforço coordenado a partir do Ministério da Economia permitiu a criação do
portal Gov.Br, que já digitalizou mais de 800 serviços públicos que antes eram prestados
de forma analógica e em papel.
O Gov.Br segue a lição dos países mais
avançados em GovTech, que centralizam a prestação dos serviços públicos
digitalmente em um único lugar, gerando eficiência e reduzindo burocracia.
Esse esforço tem gerado resultados. A ONU publicou
recentemente um novo ranking de Governo Eletrônico. No topo, os três países
mais bem posicionados são a Dinamarca, a Coreia do Sul e a Estônia. O Brasil
avançou posições. Ocupamos agora a 54ª posição, lugar ainda muito ruim para
quem tem a quarta maior população com acesso à internet do planeta.
Uma peça-chave do plano do governo federal de digitalizar serviços públicos, no entanto,
está sob ataque. Ou melhor, contra-ataque. Essa peça é a Medida Provisória 983
que cria um novo regime para as assinaturas eletrônicas. Hoje o país todo é
refém do vergonhoso certificado digital. Aquele que
você precisa pagar até R$ 200 por ano para ter um, emitido por entidades
autorizadas. Sem ele, vários serviços públicos ficam inacessíveis, como o login
na Receita Federal. Apenas 5 milhões de pessoas têm um certificado digital
hoje, menos de 2% da população.
A Medida Provisória 983 quis fazer política pública para atender
aos outros 98% que não possuem um certificado digital e nunca terão por causa
do preço. Criou um regime de assinaturas digitais em três níveis, seguindo o
padrão adotado na União Europeia, permitindo assim que outras modalidades de
assinatura sejam aceitas para o cidadão acessar serviços públicos digitalmente,
sem precisar pagar R$ 200 por ano.
Assim, permitiria o uso de tecnologias mais modernas para
reconhecer a identidade e assinatura de uma pessoa (o certificado digital é
tecnologia adotada no Brasil desde 2001!), com custo zero para o cidadão.
Só que a MP, ao chegar no Congresso Nacional, foi totalmente
descaracterizada. O relator do projeto na Câmara conseguiu o inimaginável.
Desfigurou o texto para, em vez de reduzir a aplicação do Certificado Digital,
aumentá-la.
Sob o falso argumento de “segurança e estabilidade jurídica”,
passou a exigir novos usos obrigatórios para o certificado digital, como
transferência de veículos, registro de atos societários nas juntas comerciais e
qualquer serviço público que permita movimentação acima de seis salários
mínimos.
Com isso, o Brasil mostra que é um dos poucos países que
consegue usar a tecnologia para aumentar a burocracia e não para diminui-la.
A Coreia do Sul, que aparece no topo do ranking a ONU em governo
eletrônico, há pouco ganhou destaque internacional positivo justamente por
aposentar sua versão local de certificado digital. Afinal, nos países asiáticos
a vergonha é um dos sentimentos mais temidos que um indivíduo pode suportar.
Ela acontece quando alguém faz algo incompreensível e injustificável.
Modificar a MP 983 para aumentar o nível já intoleravelmente
alto de burocracia no país faz parte dessa categoria, é algo incompreensível e
injustificável.
Ronaldo Lemos - advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e
Sociedade do Rio de Janeiro.
Fonte: coluna jornal FSP