A
indústria farmacêutica apresenta uma característica peculiar. Ela vende para
um, o doente, que é quem paga, mas quem escolhe o medicamento é outro, o
médico.
Essa condição fez com que a indústria farmacêutica internacional
desenvolvesse uma estratégia "sui generis" que, não obstante, imita
um comportamento comum entre animais inferiores, a simbiose.
Observo em meu aquário o peixe palhaço percola Nemo colher um
vôngole e leva-lo à boca de "sua" anêmona, antes mesmo que ele
próprio se alimente. Em troca, recebe da anêmona --um animal com tentáculos
venenosos-- proteção contra eventuais predadores. Essa troca de favores
chamamos simbiose.
A promoção de medicamentos se faz de porta em porta, nos
consultórios médicos. Todo mundo sabe que os inúmeros congressos médicos nos
mais pitorescos locais do mundo, de Paris a Cancun, são patrocinados pelas
empresas produtoras de medicamentos, inclusive com passagens e estadia pagas.
O que não era percebido até recentemente é a importância e o
volume de recursos repassados diretamente a médicos como remuneração pela
promoção de medicamentos. Pois bem, embora sejam esses recursos diminutos em
comparação com os gastos globais dessas empresas com propaganda, em que se
incluem as conferências técnico-turísticas, elas ultrapassam só nos Estados
Unidos uma centena de milhões de dólares por ano.
E onde fica a ética? E o ensinamento de Hipócrates? A prática
quotidiana e a necessidade de sobrevivência geram padrões de comportamento que,
por sua vez, estabelecem dogmas, tabus, que enfim são incorporados como
princípios éticos à cultura de cada sociedade.
Aos poucos, os médicos acabam por sepultar sua própria percepção
dos conflitos de interesse que regem essa maléfica simbiose. Três empresas
multinacionais do setor farmacêutico foram há pouco multadas e 18 de seus
funcionários presos na China por adotarem essa prática.
Recentemente, o médico britânico e Nobel de medicina Richard J.
Roberts acusou as farmacêuticas de evitar a cura em prol da dependência, um
fato já conhecido. Se você cura o doente, você deixa de faturar. Se você
simplesmente o mantém vivo, você fatura indefinidamente. Uma estratégia também
adotada por animais parasitas. Quantas corporações médicas denunciaram essa
condição maléfica?
Médicos e suas associações já se opuseram, se não publicamente,
pelo menos nos bastidores, a iniciativas positivas do Estado. Isso ocorreu com
a instalação do SUS e com as poucas iniciativas de produção de medicamentos em
laboratórios estatais. Agora acontece com o programa Mais Médicos, que, para as
condições atuais da saúde no Brasil, é imprescindível. Tudo que pareça
interferir com a tradicional simbiose médico-produtoras de medicamentos, mesmo
que tangencialmente, passa a ser hostilizado.
Quantos dos médicos que se declaram contra o programa repudiaram
ofertas de passagens e estadias em gostosas conferências? Quantos colocam o
interesse da sociedade brasileira acima dos seus próprios e de sua corporação?
Rogério Cezar de Cerqueira Leite -
físico, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e
membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia e do Conselho Editorial da Folha
Fonte: jornal Folha de São Paulo