O
sistema '.org' está prestes a se tornar mais um espaço comercial
Os últimos vestígios da velha internet estão agonizando.
Por "velha" internet pense no espírito quemoveu a rede no início dos anos 1990: uma comunidade global de
pessoas organizada em torno da troca de ideias e experiências. Radicalmente
descentralizada e cuja espinha dorsal eram comunidades acadêmicas, e não
interesses comerciais.
Pois bem, um dos últimos focos de resistência desse
espírito está agora em risco. Trata-se do endereço da rede ".org",
criado para ser utilizado por diversas organizações e institutos sem fins
lucrativos ao redor do mundo.
Os registros desse tipo de endereço são gerenciados por
uma entidade sem fins lucrativos chamada Isoc (Internet Society). Essa entidade
é responsável por gerir os registros ".org" assegurando que eles
atendam ao interesse público e promovendo iniciativas de apoio a atividades não
comerciais na rede. Muita gente até prefere registrar endereços em
".org" justamente porque ao fazer isso sabem que estão contribuindo para
uma organização que protege atividades de interesse público. É isso agora que
está em risco.
Desde 2010 tem acontecido uma crescente mercantilização
dos endereços da internet. A responsabilidade por essa mudança é da Icann, entidade globalque faz a gestão do sistema de nomenclatura dos sites da rede. Esse
processo levou a uma rápida concentração das entidades de registro, que se
tornaram cada vez mais ativos especulativos. Hoje, boa parte dos sistemas de
endereçamento está concentrada nas mãos de algumas poucas empresas.
Os
primeiros computadores com capacidade de processamento surgiram no final da
década de 40 (na foto); no início dos anos 50, os modelos mais avançados tinham
capacidade de 48 bits e ocupavam uma sala inteira Divulgação
A última fronteira de resistência a esse movimento tem
sido justamente os endereços ".org". Só que nos últimos
dias foi anunciada a venda de todo o sistema ".org" para um fundo de
investimento. Dentre as repercussões desse movimento está o aumento dos preços
desse tipo de endereço, que vinham sendo mantidos baixos justamente pelo fato
de serem geridos por uma entidade sem fins lucrativos.
Com isso, um dos últimos espaços não comerciais da
estrutura da rede está prestes a se tornar mais um espaço comercial, sem
nenhuma diferença institucional.
Esse movimento enfureceu Tim-Berners Lee, o criador de
todo o sistema WWW e atualmente presidente da Fundação Web. Na sexta (29), ele
declarou: "Estou muito preocupado com a venda do .org para uma empresa
privada. Se os Registros de Interesse Público não precisarem mais agir no
interesse do público, isso será uma enganação. Precisamos de uma explicação
urgente".
O chamado dele foi logo acompanhado por outras entidades
que protegem direitos na rede, como a EFF, a Epic e a Access Now (da qual, vale
mencionar, já fiz parte do conselho). O consenso entre todas essas organizações
é que a venda do ".org" eliminará um dos últimos espaços
institucionais da internet que promovem infraestrutura para atividades não
comerciais, protegida da mercantilização (e da vigilância pública ou privada)
que tomou conta da rede.
Se o ".org" irá resistir a essas
pressões, os próximos dias irão dizer. A questão é que a rede de hoje se
distanciou definitivamente das suas origens e valores iniciais. Há quem
proponha que uma outra internet precisa ser criada para retomar esse espírito.
Essa proposta não é utópica, vamos ouvir falar muito dela nos próximos tempos.
Ronaldo Lemos - advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e
Sociedade do Rio de Janeiro.
Fonte:
coluna jornal FSP