Há algumas semanas o Serpro, empresa do governo federal
que cuida do "processamento de dados" dos cidadãos, ganhou destaque
nacional. A razão foi a investigação aberta pelo Ministério Público de que
estaria vendendo dados dos cidadãos brasileiros para quem se dispusesse a pagar
por eles.
Essa venda aconteceria até para outros órgãos públicos,
que pagam até R$ 1 milhão para acessar dados pertencentes a milhões de pessoas
no país.
Infelizmente os problemas do Serpro estão longe de
terminar aí. Entrou em vigor neste mês a obrigação de que todos os empregadores
do país utilizem o portal eSocial. O problema é que, para isso, todas as
empresas, pequenas ou grandes, precisarão de um certificado digital.
Vale lembrar que o eSocial é o portal em que são
cumpridas as obrigações trabalhistas. É lá que o FGTS (Fundo de Garantia do
Tempo de Serviço), por exemplo, é recolhido.
A partir de agora, para ingressar no portal, os
empregadores precisarão do vergonhoso eCPF ou eCNPJ, o certificado digital que
é vendido por um punhado de empresas. O custo é de cerca de R$ 250 por ano, e o
certificado precisa ser renovado anualmente. Quem não pagar essa
"tarifa" anual não poderá mais entrar no eSocial, ficando excluído de
um portal que agora é obrigatório.
A questão mais imponderável é que entre os vendedores de
certificados digitais no país está o próprio Serpro. No próprio site da empresa
governamental consta a afirmação: "Para acessar o eSocial, você pode
adquirir um certificado digital da mesma empresa responsável pelo
desenvolvimento do eSocial: o Serpro".
Em outras palavras, o governo federal criou um problema
novo para os empregadores de todo o país, para poder vender --ele mesmo-- a
solução.
O certificado digital está se tornando a nova tomada de
três pinos. Nada justifica os custos enormes dessa nova exigência.
Na prática, ela exclui mais de 195 milhões de
brasileiros que não têm (nem nunca terão) um eCPF para acessar serviços
públicos essenciais.
Para piorar, o certificado é digital, mas precisa ser
obtido pessoalmente, em um "posto de atendimento". Os postos do
Serpro, por exemplo, ficam somente nas capitais.
Ou seja, todos os empregadores que moram nas mais de
5.600 cidades do interior do Brasil terão de se deslocar até uma capital, todos
os anos, para obter um certificado digital. Essa é a proposta do governo para
os empregadores do país.
Vale notar que a exigência do eCPF e do eCNPJ está se
alastrando pelo serviço público. Hoje eles são exigidos não só pelo eSocial mas
pela Receita Federal e até para a obtenção da carteira de habilitação digital.
O efeito disso é criar duas categorias de cidadãos. Um
de primeira classe, que pode pagar pelo certificado e, com isso, acessar
serviços essenciais online.
Os demais, 195 milhões, estão excluídos desse acesso.
Isso fere o princípio da isonomia da Constituição. O Brasil é possivelmente o
único país do mundo em que o governo usa a tecnologia para aumentar a
burocracia, e não para acabar com ela.
Ronaldo
Lemos - Advogado, diretor do Instituto
de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro