Não lembro quantos anos eu tinha, mas era menina. O
ingresso do extinto Canecão com a prova do crime --"Para Suzana, Beijo do
Tom" rabiscado em tinta azul -- sobreviveu a quatro mudanças
transcontinentais e tem a data, se eu lembrar onde o guardei desta vez. Mas
essa parte é a menos importante. Importante mesmo é que, logo depois do show,
minha mãe e tia me levaram no camarim, na cara de pau, e Tom Jobim não só nos
recebeu como respondeu minha pergunta: Como você sabe quando uma música está
pronta?
O músico Tom Jobim, ao piano -
Eu andava encucada com a forma como músicas diferentes
terminam. Algumas se dissolviam no final, como se o microfone tivesse ouvido o
suficiente daquele grupo e se distanciasse para experimentar algum outro.
Outras terminavam de supetão com um único acorde antes ou depois das últimas
palavras; já as clássicas tendiam a terminar espalhafatosas, com uma sucessão
de acordes. Essas eram as que mais me inquietavam: como um autor se decidia por
ora três, ora cinco repetições do acorde final? Qual era o critério?
Décadas depois, com um tanto de neurociência e minhas
próprias composições (escritas) na bagagem (esta é a 300ª só para a Folha), eu
mesma posso aventurar uma resposta. Claro que existe uma forma que satisfaz
exigências externas, como um tema pré-acordado, número de palavras, músicos ou
duração. Mas o resto só depende das expectativas de quem compõe texto ou
música.
Expectativas, aliás, que meras máquinas de computar não
têm. Desde o começo, o cérebro experimenta com sua própria atividade, monta
seus circuitos conforme os neurônios cantarolam em salvas ou a esmo, depois os
refina de acordo com o que encontra ressonância do lado de fora.
Uma forma de expressão dessa atividade interna são os
planos e modelos que criamos como expectativas do que podemos produzir, e que
acabam servindo como métrica para julgar se fizemos direito. Outras estruturas
no cérebro recebem esses planos de um lado, e de outro, o retorno dos sentidos
sobre o que de fato aconteceu. Esses são tecnicamente os "preditores de
erro": neurônios que, por virtude dessa combinação de conexões, acusam
quando o retorno não casa com o planejado.
Mas
eu prefiro chamá-los de outra forma: são os neurônios que dizem
"pronto" quando a orelha de fora ouve o que a orelha de dentro
esperava ouvir. A resposta do Tom estava certíssima: "A gente sabe".
Suzana Herculano-Houzel - neurocientista, professora da UFRJ, autora do livro
"Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante)
Fonte: www.suzanaherculanohouzel.com