Um bom 2024 será psicodélico, ou
não será
Ano pode marcar renascimento para saúde mental, mas falta perspectiva
histórica.
O ano que vem promete: se nada
der errado, a primeira psicoterapia apoiada por psicodélicos (PAP) deverá ser
autorizada nos Estados Unidos.
Dali se espalhará pelo mundo, aliviando os
traumatizados, deprimidos ou meramente infelizes, e os anos 2020 marcarão a
reentrada dos alteradores de consciência na medicina oficial –se nada der
errado.
Virá enfim a superação da década
de 1960, que começou com Timothy Leary experimentando cogumelos alucinógenos e
LSD e terminou com o guru lisérgico preso por posse de entorpecentes.
Os anos
1970 veriam erguer-se o vagalhão da Guerra às Drogas, arrastando para as
profundezas do obscurantismo qualquer benefício legalmente possível dos
psicodélicos.
É curioso esse hábito mental de
compartimentar a história em períodos discretos, os anos 60, 70, 20...
Acaba de
sair uma coletânea da MIT Press que põe essa mania em perspectiva: "Expanding Landscapes – A
Global History of Psychedelics" (paisagens em expansão – uma história
global de psicodélicos), editada por Erika Dyck e Chris Elcock.
Os 20 capítulos do volume,
incluindo um dos historiadores brasileiros Henrique Carneiro e Júlio Delmanto,
deixam patente que a psicodelia não começou na década de 60, nos EUA, e nem
mesmo na de 50, com "As Portas da Percepção" de Aldous Huxley.
Existem evidências arqueológicas de que a mescalina a abrir a mente do
britânico já teria sido usada, com o cacto peiote, uns 6 mil anos antes.
O mesmo valeria para a
dimetiltriptamina (DMT) da ayahuasca, 4.700 anos atrás. E a psilocibina dos
fungos Psilocybe, bem 4 mil anos antes de Gordon Wasson publicar
seu relato na revista Life, em 1957, sobre "cogumelos mágicos" em uso
pelo povo mazateca do México.
Espera-se que essa rica (pré-)
história não seja eclipsada de novo pela crônica dos anos 2020. A década
presente de fato merece algum destaque, desde que seja identificada como
caudatária de uma longa tradição de expansão química da consciência.
O ano de 2023, ora em seus
estertores, viu Austrália e Canadá abrirem portas –estreitas, vá lá– para uso
terapêutico de psicodélicos.
Abrigou ainda a maior conferência psicodélica de todos os tempos,
atraindo mais de 12 mil interessados a Denver, no Colorado.
Poucos meses antes, em novembro
de 2022, esse estado norte-americano aprovara a descriminalização das chamadas
"medicinas naturais" (psilocibina, DMT, ibogaína e mescalina) para
uso pessoal.
A mesma lei prevê autorização, a partir de 2024, de centros de
tratamento (até 1º de junho de 2026, apenas com psilocibina).
A legislação tem semelhanças com
a do Oregon, também aprovada por referendo de iniciativa popular, votada dois
anos antes, em 2020.
A regulamentação foi então detalhada, e em 2023 começaram
a funcionar os primeiros centros de "facilitação", que a lei manda
não se confundir com terapias psiquiátricas ou psicológicas.
Todas essas substâncias
permanecem proibidas no plano federal.
Daí pode surgir o primeiro percalço,
como alerta o médico e jurista Mason Marks, da Universidade Harvard, em artigo de 8 de
dezembro no JAMA, periódico da Associação Americana de Medicina.
Ele argumenta que a confusão com
práticas médicas e psicoterápicas já acontece nos dois estados, que estariam em
rota de colisão com instâncias federais.
Isso porque a alegação de benefícios
terapêuticos, por exemplo na propaganda de facilitadores licenciados, abriria
um flanco para autuações de agências como FDA (fármacos) e DEA (drogas).
Mesmo que saia em 2024 a
autorização da FDA para tratar transtorno de estresse pós-traumático com
psicoterapia auxiliada por MDMA (ecstasy), como se espera,
Marks alerta que a DEA só deverá tirar da lista de substâncias proibidas o
composto de grau farmacêutico, não qualquer bala à venda para baladeiros.
Em seguida poderá ser a vez da
psilocibina ser aprovada.
Mas, também neste caso, sairão do famigerado Schedule
1 só as formulações usadas nos testes clínicos, como COMP360 da empresa Compass
Pathways, não os cogumelos que legaram o princípio ativo à medicina.
Os
facilitadores do Oregon, que só têm licença para administrar o produto natural,
seguirão sujeitos a sanções federais.
Trata-se, é óbvio, de uma
injustiça com quem presta o serviço e com os eleitores que aprovaram a Medida
109 em 2020.
Mais ainda, uma injustiça com os mazatecas e todos os povos que
descobriram, selecionaram, cultivaram e preservaram esses organismos, assim
como tantas plantas de poder, até os séculos 20 e 21.
Como de hábito, a biomedicina
ocidental de proceder como se toda descoberta emanasse somente dela.
Tome-se o
caso dos fungos Psilocybe: muita gente terá ouvido falar de Gordon
Wasson (1898-1986), o dublê de banqueiro e micologista que viajou a Huautla e
ingeriu teonanácatl pelas mãos de Maria Sabina, mas quem
saberá quem foi Gastón Guzmán (1932-2016)?
Li sobre ele num texto da filha
Laura Guzmán Dávalos, depois de saber que dividirei uma mesa com ela no 10º Congresso Brasileiro de Micologia, de 19 a
23 de fevereiro em Belo Horizonte.
Micologista como o pai, ela narra como ele
teve contato com Wasson na aventura do americano entre os mazatecas e se
tornaria um prolífico pesquisador de fungos, tendo descrito mais de 220
espécies, 15 delas novas para a ciência.
Foi um dos maiores especialistas
em cogumelos "mágicos", mas o nome do mexicano não aparece em volumes
de história da psicodelia, como deveria, ao lado do ianque Wasson.
É a ilusão
de perspectiva comum entre os que se acham no centro de tudo, em geral uma
grande cidade dos EUA ou da Europa: realidade histórica e conhecimento válido
só ganham cidadania universal quando se tornam objeto de publicação em
periódicos editados em inglês.
Analogamente, a notoriedade
adquirida pela contracultura norte-americana dos anos 1960 obliterou não só a
história profunda das investigações psicodélicas ao longo de milênios, muito
antes da colonização da América por europeus.
Também ficaram esquecidas as
pesquisas clínicas e terapias experimentais com psicodélicos como o LSD da
década de 1950, conduzidas nos próprios EUA e outras paragens.
O LSD teve presença até no Brasil,
rememoram Carneiro e Delmanto no capítulo 16 volume de Dyck e Elcock.
Sintetizado no laboratório suíço Sandoz, o ácido lisérgico era distribuído para
pesquisadores e médicos do mundo todo para que experimentassem com a nova
droga, e por aqui o LSD encontrou uso em psicoterapia e estudos por médicos
como Murilo Gomes e Clóvis Martins
No entanto, quando se comenta a
psicodelia em território nacional, são a contracultura tardia dos anos 1970, o
desbunde e o tropicalismo que vêm à mente.
Os estudos e terapias das décadas de
1950 e 1960 permaneceriam no esquecimento, não fosse o trabalho minucioso
de Júlio Delmanto no livro "A
História Social do LSD no Brasil".
Ainda assim, há boas chances de
os anos 2020 se tornarem conhecidos como ápice do chamado renascimento
psicodélico.
As coisas de fato estão a acelerar-se, e, se nada der errado,
alguns passos portentosos serão dados até o final da década.
A bem da verdade, não se trata
nem mesmo de um renascimento, pois os psicodélicos sempre estiveram por aí. Se
renascem, é só para a perspectiva estreita da biomedicina, aquela em que as
coisas ainda podem dar errado.
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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias
experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos
psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou
médico antes de se aventurar na área.
Sobre a tendência de legalização
do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de
dezembro de 2022 na revista Piauí.
Para saber mais sobre a história
e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure
meu livro "Psiconautas - Viagens com a
Ciência Psicodélica Brasileira".
MARCELO LEITE - jornalista. Blog aborda pesquisas científicas e
iniciativas sobre psicodélicos.