Mais um mistério do sono decifrado
Artigo
mata charada de 70 anos de idade ao falar de onde vêm os movimentos rápidos dos
olhos durante os sonhos.
Mais de vinte e quatro mil neurocientistas de vários países
estão nesta semana na reunião anual nos EUA, trocando figurinhas, e vão voltar
aos seus respectivos laboratórios cheios de novas informações e ideias.
Eu excepcionalmente fiquei em casa porque meus pais viriam para
meu 50º aniversário, embora o Consulado dos EUA tenha melado meus planos ao
negar visto à minha mãe —prova de que se ter green card neste país não torna a
família bem-vinda, mas isso é outra história.
Também já viajei o suficiente
neste ano, então, enquanto meus colegas trocam figurinhas em pessoa, eu passo a
literatura em revista.
Achei na minha pilha de assuntos promissores um
artigo na revista Science de agosto que mata uma charada de 70 anos de idade:
de onde vêm os movimentos rápidos dos olhos durante os sonhos? São aleatórios, ou correspondem a
movimentos dos olhos e da cabeça no que se está sonhando?
Yuta Senzai e Massimo Scanziani, da Universidade da
California, em São Francisco, respondem.
Os dois se aproveitaram do fato de que
é possível registrar, com eletrodos implantados no cérebro de camundongos, a
atividade de neurônios no tálamo que representam a direção atual da cabeça no
plano horizontal, ao mesmo tempo em que os movimentos dos olhos são
monitorados, tudo em tempo real.
Enquanto o animal está acordado e explorando o
ambiente, movimentos dos olhos e da cabeça são perfeitamente casados: os
segundos seguem imediatamente os primeiros —exatamente como na dica de Daniel
Filho a Regina Duarte, ensinando-a a levantar os olhos antes de levantar a
cabeça na frente da câmera (o truque obviamente me impressionou, eu era menina
e lembro!).
A lógica: os olhos se movem automaticamente em direção ao que se
vê mover; a cabeça segue —e um reflexo maneiríssimo que envolve o labirinto, no
ouvido interno, desliza os olhos de volta para o centro da órbita, quando se
encara o novo alvo de frente.
E quando o animal adormece e começa a sonhar...
Senzai e
Scanziani descobriram que os movimentos dos olhos, que continuam acontecendo,
precedem com precisão uma nova direção virtual da cabeça, sinalizada pelo
tálamo.
A explicação mais simples para o fenômeno é que
o conteúdo dos sonhos —imagens, sons,
toques, e também planos internos representados pelo cérebro— provoca movimentos
dos olhos, que "movem" virtualmente a cabeça de que está sonhando.
Mas enquanto se sonha, a cabeça e o resto do corpo,
paralisados, não se movem de fato, então não será aquele reflexo do labirinto
que trará o olhar de volta ao centro.
Sem problemas: talvez provocados pelo
próprio movimento virtual da cabeça, causado e representado pelo cérebro, os
olhos logo se movem na direção contrária do mesmo jeito.
Com o que os camundongos estavam sonhando, isso a
gente continua sem saber. Mas a nova descoberta me parece indicação fortíssima
de que os olhos de fato se movem conforme encenamos mentalmente nossos sonhos.
Hmmm. Mais uma razão para dormir com minha venda
nos olhos...
SUZANA HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista
da Universidade Vanderbilt (EUA).