Ficção científica mostra as conexões entre as formas de vida na Terra

A atriz Drew Barrymore e o personagem do filme "E.T. - O Extraterrestre", de Steven Spielberg

Peço a indulgência do leitor para não falar propriamente de ciência, como costumo fazer nesta coluna a cada 15 dias, mas de ficção científica. Sim, ficção científica, a irmã adotiva feiosa da literatura "séria", como diriam alguns –mas dotada da virtude singular de misturar num único pacote duas compulsões humanas básicas: contar histórias e tentar entender o Universo.

Às vezes a combinação funciona de um jeito que parece mágica, como em "Os Despossuídos", romance publicado em 1974 pela americana Ursula Kroeber Le Guin, 88. Grandes livros, feito bolos chiques, possuem diversas camadas de sentido, capazes de apelar a mais de um tipo de paladar, e não é diferente no caso da obra de Le Guin. Dá para entender por que muita gente se concentra numa leitura mais "politizada" da narrativa, mas prefiro enxergá-la como um experimento mental evolutivo –um jeito de examinar o significado da diversidade da vida na Terra pelas lentes de dois mundos imaginados.

Para dar um contexto ao que estou tentando dizer, eis um breve resumo do cenário da trama, sem "spoilers". Temos, em primeiro lugar, os planetas gêmeos que acabei de mencionar: Urras, cuja biodiversidade luxuriante contrasta com a desigualdade brutal de suas sociedades humanas, e Anarres, ligeiramente menor e muito mais seco e inclemente, colonizado por membros de um movimento anarquista de Urras. Um planeta é o satélite do outro, a "Lua" que os habitantes de cada mundo veem todas as noites.

As biosferas dos dois astros nasceram de um experimento de proporções cósmicas, no qual um grupo ancestral de Homo sapiens semeou formas de vida –incluindo a própria espécie humana, claro– galáxia afora. Essa unidade galáctica primordial, porém, foi estilhaçada, e cada mundo passou a seguir trajetórias distintas.

Podemos ver o resultado disso pelos olhos do protagonista do romance, o físico Shevek, e de sua mulher, a bióloga Takver, ambos nascidos e criados em Anarres, onde só existem vertebrados (peixes) nos oceanos. "Nós estamos isolados de um jeito antinatural", comenta Takver. "No Mundo Antigo [o planeta Urras], existem 18 grandes grupos de animais terrestres; alguns, como os insetos, incluem tantas espécies que não será possível contar todas, e algumas dessas espécies têm populações de bilhões. Pense nisso: em toda parte, animais, outras criaturas, compartilhando a terra e o ar com você. Você se sentiria uma parte de tudo aquilo."

Quando Shevek finalmente viaja para Urras, a experiência de tocar pela primeira vez outro mamífero, uma lontra-terrícola (é ficção científica, gente, então relevem...), só pode ser descrita como espiritual. "Os olhos dela eram escuros, com reflexos dourados, inteligentes, curiosos, inocentes", escreve Le Guin. Shevek só consegue murmurar a palavra "ammar" –"irmão/irmã" em sua língua materna.

É aqui, creio, que imaginação e rigor científico se encontram. Poucas coisas neste mundo são mais reais do que a Árvore da Vida na qual humanos e lontras são raminhos irmãos no mesmo galho. Não nos coube a solidão espiritual de Anarres, mas a sorte de estarmos cercados por "ammar" por todos os lados. Chega a ser um despropósito a mania de perguntar se estamos sozinhos no Universo: nunca estivemos. E, como disse o velho Gandalf, esse é um pensamento encorajador.

 

Marcelo Gleiser - professor de física, astronomia e história natural no Dartmouth College (EUA). Ganhou dois prêmios Jabuti; autor de 'A Simples Beleza do Inesperado'.

Fonte: coluna jornal FSP

 

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