Peço a indulgência do leitor para
não falar propriamente de ciência, como costumo fazer nesta coluna a cada 15
dias, mas de ficção científica. Sim, ficção científica, a irmã adotiva feiosa
da literatura "séria", como diriam alguns –mas dotada da virtude singular
de misturar num único pacote duas compulsões humanas básicas: contar histórias
e tentar entender o Universo.
Às vezes a combinação funciona de
um jeito que parece mágica, como em "Os Despossuídos", romance
publicado em 1974 pela americana Ursula Kroeber Le Guin, 88. Grandes livros,
feito bolos chiques, possuem diversas camadas de sentido, capazes de apelar a
mais de um tipo de paladar, e não é diferente no caso da obra de Le Guin. Dá
para entender por que muita gente se concentra numa leitura mais "politizada"
da narrativa, mas prefiro enxergá-la como um experimento mental evolutivo –um
jeito de examinar o significado da diversidade da vida na Terra pelas lentes de
dois mundos imaginados.
Para dar um contexto ao que estou
tentando dizer, eis um breve resumo do cenário da trama, sem
"spoilers". Temos, em primeiro lugar, os planetas gêmeos que acabei
de mencionar: Urras, cuja biodiversidade luxuriante contrasta com a
desigualdade brutal de suas sociedades humanas, e Anarres, ligeiramente menor e
muito mais seco e inclemente, colonizado por membros de um movimento anarquista
de Urras. Um planeta é o satélite do outro, a "Lua" que os habitantes
de cada mundo veem todas as noites.
As biosferas dos dois astros
nasceram de um experimento de proporções cósmicas, no qual um grupo ancestral
de Homo sapiens semeou formas de vida –incluindo a própria espécie humana,
claro– galáxia afora. Essa unidade galáctica primordial, porém, foi
estilhaçada, e cada mundo passou a seguir trajetórias distintas.
Podemos ver o resultado disso pelos
olhos do protagonista do romance, o físico Shevek, e de sua mulher, a bióloga
Takver, ambos nascidos e criados em Anarres, onde só existem vertebrados
(peixes) nos oceanos. "Nós estamos isolados de um jeito antinatural",
comenta Takver. "No Mundo Antigo [o planeta Urras], existem 18 grandes
grupos de animais terrestres; alguns, como os insetos, incluem tantas espécies
que não será possível contar todas, e algumas dessas espécies têm populações de
bilhões. Pense nisso: em toda parte, animais, outras criaturas, compartilhando
a terra e o ar com você. Você se sentiria uma parte de tudo aquilo."
Quando Shevek finalmente viaja para
Urras, a experiência de tocar pela primeira vez outro mamífero, uma
lontra-terrícola (é ficção científica, gente, então relevem...), só pode ser
descrita como espiritual. "Os olhos dela eram escuros, com reflexos
dourados, inteligentes, curiosos, inocentes", escreve Le Guin. Shevek só
consegue murmurar a palavra "ammar" –"irmão/irmã" em sua
língua materna.
É aqui, creio, que imaginação e
rigor científico se encontram. Poucas coisas neste mundo são mais reais do que
a Árvore da Vida na qual humanos e lontras são raminhos irmãos no mesmo galho.
Não nos coube a solidão espiritual de Anarres, mas a sorte de estarmos cercados
por "ammar" por todos os lados. Chega a ser um despropósito a mania
de perguntar se estamos sozinhos no Universo: nunca estivemos. E, como disse o
velho Gandalf, esse é um pensamento encorajador.
Marcelo
Gleiser -
professor de física, astronomia e história natural no Dartmouth College (EUA).
Ganhou dois prêmios Jabuti; autor de 'A Simples Beleza do Inesperado'.
Fonte:
coluna jornal FSP