Não sei se vou te amar


Amor entre pais e filhos é inspiradoramente contingencial.

 

No começo tinha o helicóptero, que você ouviu na sala de ultrassonografia e que te explicaram ser o coração do seu bebê. "Tão rápido, está tudo bem?", você pergunta com um nó na garganta, ou lágrimas, ou espanto, ou qualquer reação —e na falta dela. Um centímetro e meio com um micro coração batendo a mil. Inacreditável.

Não se impressione se a gestante for a mais espantada, incrédula ou desafetada diante da notícia da gestação. Nada poderia ser mais bizarro do que ter alguém se formando dentro de si. É bem mais fácil imaginar a existência de um bebê estando do lado de fora.

Se você desejava um filho e se essa gestação for depositária desse desejo, alguma coisa pode rolar entre pais e bebês. Nem sempre há desejo de filhos e ainda, nem sempre o desejo de filho coincide com aquela gravidez.


Entre o filho que você queria ter —solução edípica que pode se transformar em outras realizações igualmente satisfatórias— e o helicóptero de um centímetro e meio, existe a distância entre o sonho e a realidade.

Você não sabe o sexo, o gênero ou a orientação sexual —marcadores pelos quais nossa cultura é obcecada e que em alguns grupos humanos são desimportantes até a puberdade.

Você não sabe sua aparência, temperamento, manias, limites, defeitos e qualidades. Se o ama, o faz às cegas, ou melhor, ama o bebê que você sonhava ter.

Talvez você ame ser capaz de ter um bebê, imitar seus pais, vir a ser nomeada mãe/pai, ter uma descendência, manter ou forçar uma relação conjugal, ser considerada/o adulta/o, cuidar de alguém, educar alguém, imitar seus amigos/as, entrar para o clube de pais/mães, sentir-se mulher/homem. Talvez um pouco de cada coisa.

E o que o pequeno polegar tem a ver com isso?

Embora o afeto não seja exatamente dirigido à pessoa do bebê —mesmo porque essa pessoa a rigor ainda não existe— pode ser que ele caia nas graças dos futuros pais e acabe ficando no lugar do sonho. Às vezes, o bebê não é sonhado e vem como um estorvo. Como amor entre humanos é fruto de convivência, reconhecimento, cuidado, auto estima, mesmo esses casos podem acabar em excelentes relacionamentos. Ou não. O amor pode ocorrer onde menos se espera e ratear onde contamos com ele.

O maior medo humano é da nossa própria humanidade, assim preferimos acreditar em garantias inexistentes a encarar que não há amor automático. Mas há a dignidade de reconhecer que não foi possível amar e tentar oferecer o melhor para a criança. O pior seria lhe imputar nossas limitações, ou ainda, sugerir que o problema é dela e não um triste desencontro. Como a criança espelha nossas fantasias, nem sempre gostamos do que elas nos revelam do estranho em nós.

Se não há garantias para que o amor aconteça, tampouco há para que permaneça. A cada nova etapa somos apresentados a um sujeito diferente: bebê, criança, pré-adolescente, adolescente, jovem adulto, adulto, velho. E a cada nova etapa temos que nos transformar —não sem susto— em um novo pai/mãe. Pais de bebê cuidam sem parar, pais de criança cuidam sem parar e põem limite o tempo todo, pais de adolescentes cuidam, põem limites, mas os recebem também. Como se diz "é como videogame, cada nova fase fica mais difícil". Eu completaria: a cada nova fase você se depara com um estranho que jurava conhecer desde sempre, mas obviamente não. Diante de uma gestação, só o tempo dirá o que seremos capazes de construir juntos. Não é assustadoramente promissor?

Vera Iaconelli - diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

Fonte: coluna jornal FSP

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